André Galhardo
Em declaração recente, o ex-presidente do Banco Central Arminio Fraga propôs que o governo congele os aumentos reais do salário mínimo por um período de seis anos. A justificativa, segundo ele, é conter a expansão dos gastos obrigatórios, especialmente com a Previdência e os benefícios assistenciais como o BPC (Benefício de Prestação Continuada). O problema é que, na prática, o receituário defendido pelo economista acaba por transferir à população de menor renda o custo do próprio combate à inflação.
O próprio governo já reconheceu que o ritmo de crescimento dessas despesas é incompatível com o novo arcabouço fiscal —o que dá algum fundamento técnico à proposta, mas impacta diretamente aqueles que dependem do salário mínimo, justamente a parcela da população que mais sofre com o aumento dos preços.
É inegável que precisamos discutir mecanismos para controlar a trajetória das despesas públicas e garantir que as regras fiscais tenham credibilidade no médio e longo prazos. Caso contrário, o novo arcabouço corre o risco de ter o mesmo destino do teto de gastos: ser abandonado às vésperas de uma eleição por não conseguir lidar com a realidade orçamentária do país.
No entanto, é curioso —e sintomático— que a resposta proposta envolva penalizar exatamente quem depende do salário mínimo. Fraga já declarou, corretamente, que a inflação é extremamente nociva para a população mais pobre. Mas, para ele, a inflação que dói é, essencialmente, aquela causada pelo desequilíbrio das contas públicas. O ex-presidente do BC defende que o descontrole fiscal é o principal fator a corroer o poder de compra dos mais vulneráveis e que a contenção das despesas do Estado é o único caminho para evitar o aumento da pobreza e da desigualdade.
Congelar os reajustes reais do salário mínimo por seis anos —ainda que assegurada a correção nominal pelo INPC — é uma forma de naturalizar perdas graduais no poder aquisitivo das famílias mais pobres, justamente aquelas que mais sofrem com o aumento dos preços.
É justamente nesse ponto que reside a questão central: a perda de poder aquisitivo provocada pelo congelamento do salário mínimo “dói menos” do que a inflação gerada por choques de oferta ou pelo “descontrole” fiscal? Embora o INPC reflita a variação de preços para famílias com renda de até cinco salários mínimos, trata-se de uma média ponderada de nove grandes grupos de consumo, com cerca de 367 itens —que vão desde arroz e feijão até passagens aéreas. Isso significa que a variação medida pelo índice pode ocultar aumentos expressivos nos preços de bens essenciais, como alimentos e transportes, que têm peso muito maior no orçamento das camadas mais pobres.
Além disso, a inflação sentida não é homogênea. Em 2021, por exemplo, enquanto o INPC nacional fechou em 10,16%, Curitiba e Porto Alegre registraram 12,84% e 11,38%, respectivamente. Em 2020, nove das 16 regiões pesquisadas pelo IBGE tiveram variações acima da média nacional. Em 2024, seis regiões também superaram o índice nacional, com destaque para São Luís (6,20%), contra um INPC nacional de 4,77%. Ou seja, mesmo a reposição “integral” do salário mínimo com base no INPC já pode embutir perda real em várias localidades do país.
Limitar os reajustes do salário mínimo ao INPC, portanto, é não apenas ineficaz como perigoso. Em um país onde mais de 25% dos lares convivem com algum grau de insegurança alimentar e cerca de 9 milhões de pessoas enfrentam insegurança alimentar grave, permitir que o salário mínimo perca sistematicamente seu valor real —mesmo que em 2% ou 3% ao ano— é um retrocesso inaceitável.
A vigilância sobre as contas públicas é necessária, mas deve ser acompanhada de equilíbrio. A retórica de colapso iminente, cada vez mais comum em certos círculos econômicos, muitas vezes mascara uma agenda de ajuste concentrada nos mais pobres. Precisamos, sim, de um debate sério sobre a trajetória fiscal do país —mas ele deve buscar um equilíbrio entre responsabilidade e justiça social. Ajustar contas públicas não pode significar normalizar a perda de renda dos que menos têm. Afinal, qual é a inflação que dói menos?
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