Bruna Fantti
Quando Nina (nome fictício) fala sobre a infância, suas lembranças misturam brincadeiras com o som dos tiros rasgando o céu da Maré, complexo de favelas na zona norte do Rio de Janeiro. Era a avó quem dava o alerta: “Deita no chão, não se mexe”, ela recorda.
Hoje, aos 27 anos, Nina é artista e ensina crianças na Maré. Foi lá que ela recebeu a reportagem, mostrando a casa onde mora, de tijolos expostos, sem reboco, situada em uma divisa entre facções rivais. Os muros do local, além de grafites, têm marcas de tiros.
“Eu cresci achando que o mundo era assim. Que era normal ter tiro toda hora. Aqui na Maré a gente conhece a maldade cedo”, diz. O contato com outras realidades só veio mais tarde, quando ela foi à praia pela primeira vez. “Eu já era adolescente quando fui a Copacabana. Lá tudo era diferente, até o jeito das pessoas. Eu me achava tão fora do lugar que parecia errado eu estar ali, como se todos me olhassem, julgando.”
Deitar no chão para se proteger dos tiros ou dormir em um colchão no corredor segue sendo a rotina de outras famílias. “Quando a gente vê aqui o pessoal armado tenso, a gente já sabe que vai ter operação ou pode ter confronto. Costumamos dormir mais no corredor que vai para a cozinha do que na cama, que fica na altura da janela”, contou uma cozinheira que diz morar perto de uma boca de fumo.
Nina diz incentivar as crianças a usarem a arte como forma de expressão. Durante o julgamento da ADPF das Favelas no STF (Supremo Tribunal Federal), elas enviaram desenhos aos ministros. Neles, o clássico sol no canto da folha estava presente, mas havia também armas e pedidos de paz.
Proposta pelo PSB (Partido Socialista Brasileiro), a ADPF 635 questionava a letalidade das ações de segurança pública no estado e buscava evitar intervenções policiais abusivas em áreas de favela. O julgamento foi concluído na última quinta-feira (3). Foi decidido que as operações policiais não precisarão ser comunicadas previamente, mas uma série de determinações deverá ser cumprida, como câmeras e ambulâncias para a realização das operações.
Educadoras da areninha da Maré —equipamento cultural— afirmam que é comum as crianças deitarem no chão para se proteger. A suspensão das atividades também é comum. Em 2024, de acordo com a ONG Redes da Maré, foram registradas 42 operações policiais na região, afetando 7.302 alunos. Além disso, cerca de 90% dessas operações ocorreram próximo a unidades de saúde, levando à interrupção de serviços básicos por 30 dias e ao adiamento de aproximadamente 8.715 atendimentos.
“A diretora nos avisa no grupo de WhatsApp quando não vai abrir, por segurança. Meu filho está no 4º ano e já perdeu muitas aulas. Fico preocupada com o aprendizado, mas também com a segurança”, diz Carla, moradora da Maré. “Quando começa o tiroteio, a gente já tem um esquema: a gente deita no chão da sala e tenta manter as crianças calmas”, contou uma educadora.
Em nota, a Secretaria Municipal de Educação diz que, no ano letivo de 2024 (fevereiro a dezembro), ao menos uma escola foi impactada em 194 dias diferentes em decorrência de operações policiais ou confrontos entre facções criminosas.
Profissionais de saúde, educação e assistência social que atuam dentro das favelas também se veem impedidos de trabalhar quando há confronto. “Tem dia em que os agentes comunitários ficam sem circular e as consultas agendadas são desmarcadas. Isso atrapalha o acompanhamento de gestantes, idosos, crianças”, contou uma enfermeira que atua na Rocinha.
Moradores contam também que já deixaram de voltar para casa quando são notificados de operação. “Já dormi na casa de uma amiga duas vezes este ano porque a entrada da favela estava cercada. Eu preferi não arriscar. Quem mora aqui vive sempre com esse receio”, relata Maicon Rodrigues, 21, estudante universitário.
Em frente ao painel de azulejos em homenagem a vítimas da violência no complexo de favelas, uma das coordenadoras da ONG Redes da Maré, Liliane Santos, observa que o local está intacto há três anos.
“Aqui é uma área de divisa de grupos armados. Você pode perceber que as paredes das casas estão com tiros, mas esse painel está inteiro. Esses tiros são antigos. Desde que essa intervenção urbana foi feita, os confrontos aqui pararam”, afirmou.
Ela também mostra que uma praça com brinquedos para crianças foi feita em um local que era usado como área de lixo. “Isso mostra que intervenções arquitetônicas, sanitárias, trazem outra perspectiva de ocupação do território, os moradores se apropriam do espaço”, diz.
Para ela, a grande vitória da ADPF é a mobilização popular. “Trouxe foco para um assunto que mexe de diferentes maneiras na vida de todos.”