“O Senhor é o meu pastor e nada me faltará”. Salmo 23. Talvez o mais famoso de todos. A tradição remete a autoria dos salmos ao rei Davi, de todos os heróis bíblicos, o mais amado por Deus.
O predileto de Deus, o rei Davi, fala muito da personalidade do Deus de Israel. Um desses traços é sua imprevisibilidade absoluta. Esta, aliás, faz parte do caráter absoluto da sua liberdade. Impredicável, o Deus de Israel escolhe seus heróis ou heroínas ao bel-prazer da sua vontade livre, como nenhuma outra jamais existiu.
Deus ama Davi, muitos dizem, por conta da sua fé inabalável. A ideia de que importa a Deus o coração honesto de uma pessoa, no caso de Davi, é marcante. Um filósofo poderia dizer que o imperativo categórico kantiano de que jamais devemos mentir é a mais pura realidade do coração desse rei da casa de Judá.
Davi jamais disfarça suas emoções, desejos, desesperos, ódios e alegrias diante de Deus. Isso nos leva a crer que o Deus de Israel se comove diante de alguém que é sincero acerca de si mesmo. Sendo Deus onisciente, a sinceridade diante dele significa, antes de tudo, a sinceridade diante de si mesmo, já que Deus sabe tudo.
Para além do debate acerca da autoria dos Salmos —Davi os escreveu? Escreveu alguns? Nenhum?—, o fato é que o personagem Davi é apresentado pela tradição como sendo um poeta e místico que encantava as pessoas e a Deus com sua harpa e seu canto. Nesse canto —os Salmos em si—, Davi revela todas as facetas de uma alma a mercê de Deus e que, ao mesmo tempo, goza de uma intimidade com o criador que ninguém jamais teve — à exceção de Cristo, para os cristãos, que, aliás, entendem que o seu Messias era descendente da casa de Davi, do contrário não seria o Messias, segundo a profecia.
A vida de Davi é “uma representação intricada de grandeza e loucura humana, de sabedoria e pecado, de fé e fidelidade, de perspectivas contraditórias e desejos conflitantes”. Assim, cita Randy Neal no seu ensaio de crítica bíblica “The Search for the Elusive King David: Studies in 1 & 2 Samuel” —a busca pelo esquivo rei Davi, numa tradução direta. Mas vale dizer que “elusive” pode ser também traduzido por indescritível ou ilusório. O termo aponta para a difícil apreensão do personagem, o que não é difícil de se entender dadas as contradições das fontes, sua antiguidade e o fato de que ele teria vivido cerca de 1.000 anos antes de Cristo.
A propósito, o Samuel citado no título é o profeta por excelência da epopeia de Davi, e seus livros, fontes essenciais para os estudos davidianos.
Um dos traços mais citados acerca do predileto de Deus é sua vida sexual rica. As fontes e estudos acerca de Davi indicam nove esposas “oficiais”, além de várias concubinas. Neste sentido, Davi repete, aliás, como em quase tudo, um padrão da realeza do período no Oriente Médio.
Vale salientar que, em Israel, assim como nos reinos em volta, Egito ou Babilônia, cerca de 1000 a.C., as esposas dos reis não eram meros objetos sexuais. Apesar de serem referidas sempre como “mãe de”, “esposa de” ou “filha de alguém”, essas mulheres tinham grande poder no ordenamento político do estado monárquico de então.
Esse poder não surgia, como muita gente pensa, do que ela fazia na cama com o rei, o seduzindo com o seu corpo e gestos eróticos. Esse poder emanava da sua posição dentro do palácio e da hierarquia política mesma: essas mulheres carregavam consigo uma soberania conjunta com o rei. Resumindo: tinham grande poder.
Mesmo que as filhas pudessem ser “dadas” em casamento para fins políticos, assim como os filhos, essa dinâmica não retirava o poder cotidiano dessas mulheres da realeza israelita antiga.
Chegavam mesmo a ser conselheiras dos reis. Não devemos esquecer que a intimidade sob os lençóis quase sempre implica um modo, muitas vezes aparentemente invisível, de soberania pouco estudada em ciência política.
As mais famosas das suas esposas são Michal, filha do rei Saul que o precede no trono, e Batsheva, a esposa do general Urias, de quem ela é roubada por Davi. Ela será a mãe do herdeiro de Davi, o rei Salomão.
Segundo as fontes, Davi a conhece pela primeira vez, quando caminhando sobre o teto do palácio —caminhadas essas descritas como momentos místicos—, a vê, linda, tomando banho, e, a partir daí, enlouquece por ela. Fará dela adúltera e rainha.
“Na verdade, todo homem caminha como uma sombra, em vão se inquietam, amontoam riquezas e não sabem quem as levará.” Salmo 39. Este é o mesmo homem que arde de desejo pela mulher do outro, e a toma. O predileto de Deus.
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