Por séculos, a tradição judaico-cristã difundiu uma imagem masculina da divindade bíblica: Deus como pai celeste, senhor todo-poderoso e rei dos exércitos. Mas o que um historiador que estuda a Bíblia tem a dizer sobre passagens que associam Deus a atributos femininos?
Este tema já foi abordado nesta Folha sob um ponto de vista teológico. Kenner Terra lembrou que tudo o que os humanos dizem sobre Deus é simbólico; usamos nossa linguagem para traduzir, por aproximações e comparações, uma essência divina intraduzível.
Para o historiador, é fundamental explicar os contextos culturais que levaram sociedades consecutivas a construir uma identidade predominantemente masculina para a divindade.
De fato, Deus jamais é apresentado explicitamente como mulher na Bíblia hebraica ou no Novo Testamento. Entretanto, como também destacou Kenner Terra, várias passagens bíblicas utilizam metáforas maternais e femininas para representar Deus.
O monoteísmo judaico-cristão surgiu em um ambiente cheio de deusas, como Ishtar, Ísis, Astarte, Asherah e Afrodite. Ao definir Deus como uma divindade masculina única, os textos bíblicos excluíram explicitamente essas figuras femininas, mas absorveram delas atributos como fertilidade e proteção da prole.
Em Isaías, por exemplo, Yahweh se compara a uma mulher em trabalho de parto, gemendo e suspirando. Também em Isaías, Deus promete consolar Jerusalém como uma mãe afetuosa consola seu filho. No cântico de Moisés, no Deuteronômio, Deus é representado como quem “dá à luz” o seu povo, utilizando-se explicitamente a linguagem do parto feminino.
A dimensão materna de Yahweh surge ainda em metáforas animais: Deus como uma águia que cuida dos filhotes ou uma ursa furiosa ao perder seus pequenos.
No Novo Testamento, o cuidado materno aparece nas ações de Jesus. Nos evangelhos de Mateus e Lucas, ele lamenta por Jerusalém, desejando acolher seus habitantes como uma galinha que protege os pintinhos sob suas asas.
A teologia tradicional frequentemente marginalizou essa dimensão feminina, reforçando uma imagem masculina de Deus. Porém, algumas tradições minoritárias resgataram esses aspectos femininos do sagrado. No século 14, por exemplo, Julian de Norwich afirmava que “assim como Deus é nosso pai, também é nossa mãe”. Este místico cristão inglês via Cristo agindo maternalmente ao criar, nutrir e redimir a humanidade.
Na mística judaica, o divino também possui uma dimensão masculina e feminina. A separação desses princípios gera uma ruptura entre o divino masculino, superior e celeste, e o feminino, presente no mundo material com a humanidade. A restauração cósmica ocorre pela união desses dois aspectos, frequentemente descrita em termos erotizados, como um casamento sagrado.
Mais recentemente, a teologia feminista criticou fortemente a visão exclusivamente masculina e patriarcal de Deus e a exclusão feminina na liturgia e hierarquia das igrejas. Atualmente, a questão da ordenação de mulheres é intensamente debatida na Igreja Católica.
Afirmar que Deus é pai e também mãe não é, portanto, provocação gratuita. Trata-se de uma discussão legítima, que busca recuperar elementos presentes nas escrituras fundadoras do judaísmo e do cristianismo, mas que foram historicamente marginalizados por tradições patriarcais.
Se você é crente, talvez valha a pena desejar um “feliz Dia das Mães” ao Papai do Céu neste domingo.