Globo faz 60 em meio à urgência de se adaptar ao futuro – 25/04/2025 – Ilustrada

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Mauricio Stycer

Perto do final da noite deste sábado (26), dia em que a Globo comemora 60 anos de sua inauguração, Odete Roitman vai aparecer na tela da TV. É só um raio, anunciando as chuvas e trovoadas que virão a partir da próxima semana em “Vale Tudo“. Mas é também um aviso de que a emissora está viva, alerta e disposta a enfrentar as turbulências pelas quais está passando dentro de um mercado em profunda transformação.

Os números de audiência das primeiras quatro semanas indicam que o remake de Manuela Dias não é um fenômeno, mas está sendo visto com bons olhos. Até onde pode chegar ainda é uma incógnita, mas o tsunami de fofocas que a novela está gerando nas redes sociais sugere que a emissora segue relevante, pautando conversas dos espectadores.

A versão original, exibida em 1988, é símbolo de uma era que ficou para trás. Um tempo em que as novelas registravam médias de 50, 60 pontos de audiência e atraiam a atenção de 90% dos aparelhos de TV ligados. Um tempo em que as pessoas usavam corte de cabelo igual ao dos personagens, compravam as roupas que viam na tela e reproduziam gírias e bordões inventados pelos autores.

É muito sintomático que a Globo tenha decidido refazer a melhor novela que produziu em sua história, escrita por Gilberto Braga, Aguinaldo Silva e Leonor Bassères, justamente neste ano em que se tornou uma sexagenária. Não é saudade nem vontade de reviver o passado. É um exercício de atualização, um esforço de se manter viva.

No início dos anos 1990, a Globo dizia ser a quarta maior emissora de TV aberta do mundo, atrás apenas das americanas ABC, NBC e CBS. Era mentira, afirma Ernesto Rodrigues no recém-lançado livro “A Globo – Concorrência: 1985-1998“. Na verdade, os números da Globo equivaliam à soma da audiência dos três canais. Roberto Irineu Marinho, primogênito do criador da TV, afirma no livro que ficaria “um pouco presunçoso demais” usar aqueles números. Por isso, seus executivos criaram o que passaram a chamar de “média ponderada para fins promocionais”.

Segundo Marinho, naquele momento a Globo era “a primeira do mundo em cobertura simultânea, a primeira do mundo em produção própria e a primeira do mundo em audiência”. Mas era a décima do mundo em faturamento e, provavelmente, a oitava em lucro. “Ou seja: éramos a número um do mundo em várias categorias, mas em outras não, principalmente no faturamento, em função do tamanho reduzido do mercado brasileiro”, diz o empresário.

Esse reinado foi abalado por mudanças no mercado e evoluções tecnológicas. Ainda na década de 1980, a ditadura militar contrariou a Globo criando duas redes de TV, SBT e Manchete. Fernando Collor de Mello, ao que tudo indica, teve papel importante na venda da Record para Edir Macedo, em 1989. A concorrência começou a crescer e a incomodar.

A TV por assinatura atraiu parte do público das classes A e B. No final dos anos 1990, como mostrou o livro “A Deusa Ferida”, organizado por Silvia Simões Borelli e Gabriel Priolli, a hegemonia da emissora carioca já não era total.

Em 2002, com uma dívida perto de US$ 2 bilhões, a Globo quase quebrou. A turbulência financeira do final dos anos 1990, a desvalorização cambial em 1999, o estouro da bolha das empresas de internet em 2001 e projetos malsucedidos obrigaram a empresa a pedir uma moratória e renegociar com os credores. Foi um momento crucial, que ajudou a emissora, ao final de um doloroso processo, a voltar a crescer e ganhar musculatura.

Mas a revolução digital, no século 21, complicou as coisas novamente. A maneira de assistir televisão mudou. Sentar-se no sofá com a família diante do aparelho de TV começou a se tornar anacrônico, diante das muitas possibilidades de ver na internet. O material produzido por usuários passou a disputar a atenção do espectador com o conteúdo profissional oferecido pelas emissoras. As plataformas de streaming sugeriram uma nova forma de consumir produtos audiovisuais.

A Globo chegou à terceira década do século 21 numa situação curiosa. É líder em audiência e faturamento na TV aberta, mas constata a permanente redução do tamanho desta mídia. Está bem posicionada na TV por assinatura, mas vê o número de assinantes despencar de 19 milhões, em 2014, para pouco mais de 10 milhões hoje. E segue investindo os tubos no streaming, sem ver os resultados chegarem.

Sob o comando de um familiar da terceira geração, Paulo Marinho, a Globo reconheceu em 2024 que errou na distribuição de investimentos entre suas unidades nos anos anteriores e perdeu dinheiro. Hoje está claro que a TV aberta segue extremamente importante e que o Globoplay é necessário, mas ainda não ocupa o espaço que se imaginou que ocuparia.

Para enfrentar esse quadro complexo, a Globo passou por uma espécie de “retrofit”, buscando ficar mais leve e renovada. O sinal mais visível foi a decisão de alterar os contratos de trabalho de seu elenco. Ainda que mantenha acordos fixos, de longo prazo, com alguns atores e atrizes, a grande maioria hoje é contratada por obra fixa. Nomes reluzentes no imaginário do espectador deixaram a emissora nos últimos anos.

Não menos importante, a emissora pôs em prática um processo significativo de ampliação da representatividade racial e de gênero em todas as suas áreas, da teledramaturgia ao jornalismo, passando por diretorias e gerências. Nascida nos anos 1990, a “mulata Globeleza” sumiu da tela da emissora em 2022.

O “retrofit” incluiu também uma revisão no portfólio de direitos esportivos. A Globo renunciou à caríssima exclusividade em alguns torneios e passou a dividir espaço com outros canais e plataformas de streaming. Sob o argumento de que os valores eram economicamente insustentáveis, a emissora deixou de transmitir o Campeonato Paulista e viu a Record superá-la em audiência alguns domingos.

Com um pé na TV aberta e outro no streaming, hoje Globo tem feito experiências, buscando agradar diferentes perfis de público. Num momento de grande indefinição, em 2022, exibiu praticamente ao mesmo tempo duas novelas das nove, “Todas as Flores“, no Globoplay, e “Travessia“, na TV aberta.

A lamentar que, neste processo de renovação, a emissora deixe em segundo plano a ousadia que a caracterizou em muitas áreas, sobretudo na teledramaturgia. Também é uma pena a ausência de programação regular de humor desde 2020, rompendo com uma tradição que remonta às origens.

Em janeiro do ano passado, a Globo também trocou a direção do jornalismo. Ricardo Villela é apenas o sexto profissional a ocupar essa posição nos 60 anos da Globo. Superada a incômoda posição de ter sido tratada como inimiga do governo de Jair Bolsonaro, o jornalismo da emissora vive um momento de tranquilidade na cobertura política, mas ainda deve satisfações públicas pela adesão acrítica que marcou os tempos de Lava Jato.

Diante de gigantes do streaming —como Netflix, Disney e Amazon, entre outras—, o desafio da Globo hoje não é pequeno. O maior trunfo da empresa é sua tradição e capacidade de produção de conteúdo brasileiro. Não à toa, os rivais estrangeiros estão flertando neste terreno.

A Globo espera, ainda, uma regulação do setor, que deixe as empresas em condições menos desiguais de atuação —algo essencial para que ela siga comemorando muitos anos de vida.



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