Isabella Alonso Panho
Na segunda-feira 24, o ex-presidente Jair Bolsonaro foi a Recife e Vitória de Santo Antão, em Pernambuco, onde atraiu uma boa legião de simpatizantes nas ruas. Nas entrevistas e nos discursos, não fugiu ao tema que mais o pressiona: a denúncia feita pela Procuradoria-Geral da República ao Supremo Tribunal Federal em que é acusado de atuar ativamente em conspiração para um golpe de Estado. O capitão questionou a legitimidade do STF para julgá-lo, o rito do processo na Corte, o embasamento da acusação, as sentenças impostas a seus apoiadores no 8 de Janeiro e defendeu a anistia. Disse, ainda, que há cada vez mais preocupação internacional com seu caso, anunciou que vai voltar a “rodar o país” para se defender e convocou as pessoas a irem ao ato que capitaneará em Copacabana, no Rio de Janeiro, no dia 16 de março. A pregação em solo pernambucano, que abriu o que parece ser uma temporada de defesa pública de sua inocência, resume também as linhas gerais da estratégia que o ex-presidente já coloca em marcha para tentar sair do cerco judicial, que pode ser fatal para seu futuro político.
A batalha mais decisiva, claro, vai se dar no STF. Para ela, o ex-presidente sinaliza que vai usar duas artilharias: uma direcionada a questionar o rito do processo e outra com mira na acusação feita pelo procurador-geral, Paulo Gonet. As primeiras iniciativas, sem sucesso por enquanto, foram para tentar ampliar o prazo para defesa, que Alexandre de Moraes fixou em quinze dias, e exigir o acesso à totalidade das provas. Moraes liberou o conteúdo em vídeo da delação do tenente-coronel Mauro Cid, ex-ajudante de ordens de Bolsonaro, uma das principais peças da acusação, mas as defesas (não só de Bolsonaro) querem todas as mídias das apreensões de celulares e notebooks dos acusados. “Não tive acesso nem às mídias do telefone do meu cliente, cujo celular foi apreendido há quase dois anos. O que nos preocupa é termos um julgamento que obedeça à normalidade”, diz Paulo Amador da Cunha Bueno, que, ao lado de Daniel Tesser e Celso Vilardi, compõe a banca de defesa do ex-presidente. Os acusados também querem a prerrogativa de se defenderem depois de Cid, já que a regra das ações criminais é que o réu seja o último, tanto a ser interrogado quanto a apresentar alegações finais, para que ele tenha a chance de rebater tudo o que foi dito.

A estratégia da defesa também mira os magistrados que vão avaliar o processo e o local onde isso deverá ocorrer. Os advogados de Bolsonaro já pediram que os ministros Flávio Dino e Cristiano Zanin sejam impedidos de participar do caso. O primeiro, ex-ministro de Lula, por mover uma queixa-crime contra Bolsonaro no STF quando era governador do Maranhão. Zanin, por ter sido advogado não só de Lula, mas da coligação que apoiou sua eleição — o magistrado, inclusive, já se afastou de um recurso de Bolsonaro contra a inelegibilidade, pois ele próprio havia sido o autor da petição inicial da ação. Os dois ministros são da Primeira Turma, onde o caso será julgado. Se os pedidos prosperarem, o colegiado que sentenciará o ex-presidente ficará com apenas três membros (Moraes, Cármen Lúcia e Luiz Fux) — mas essa hipótese é remota. Nesta quinta, 27, Zanin já disse que não vê razões para ser impedido e que deve julgar Bolsonaro. Os advogados de Bolsonaro também farão de tudo para que o caso vá ao plenário, onde eles apostam que possa haver divergências entre os onze ministros. Uma quase certa é a de André Mendonça, que votou por penas mais brandas aos acusados do 8 de Janeiro. Nunes Marques também poderá abrir alguma dissidência.
Outra aposta mira o coração da denúncia: a delação de Mauro Cid. A nulidade do acordo de colaboração é uma tese certa que será usada pela defesa. Além de alegarem que parte da delação está em segredo (especificamente as mídias das apreensões), os advogados devem questionar o fato de o tenente-coronel ter decidido falar depois de ficar quatro meses preso e ver seus familiares serem envolvidos na investigação. “Ele foi esgotado moralmente. Com a abertura do sigilo tivemos acesso a um acordo com condições insólitas pela benevolência”, diz Bueno. Para ele, Cid conseguiu benefícios fora do habitual nas delações. Entre os advogados de defesa, no entanto, a avaliação é que dificilmente esses pedidos vão prosperar dado o quadro de união do STF em torno do ministro Alexandre de Moraes.
Outra frente de batalha, bem mais barulhenta, é buscar apoio popular. No fim de janeiro, quando a denúncia era apenas uma possibilidade, aliados já iniciaram a convocação de um ato para 16 de março. Nas redes sociais, a deputada Carla Zambelli (PL-SP) chamava a população para as ruas de São Paulo, enquanto seu colega Nikolas Ferreira (PL-MG) preparava uma manifestação em Belo Horizonte. Bolsonaro viu na mobilização uma oportunidade para demonstrar força. Para manter o controle, porém, decidiu concentrar as atividades no Rio. O ato na orla de Copacabana tem um objetivo: conseguir a foto de uma multidão em defesa do ex-presidente que possa circular pelo mundo, exibir sua musculatura política e pressionar o STF.

A estratégia provocou ruídos na direita e, não raro, troca de farpas. A principal polêmica gira em torno da pauta: Bolsonaro não quer pedir o impeachment de Lula, como defendia parte da direita, inclusive Nikolas Ferreira. Nas convocações, o capitão diz que as pautas serão anistia, liberdade de expressão, custo de vida, segurança e “Fora Lula 2026” — ou seja, que o petista seja derrotado no voto, de preferência por ele. “A pauta sempre foi anistia e veio a reboque o ‘Fora Lula’”, diz Fabio Wajngarten, ex-secretário de Comunicação na gestão Bolsonaro.

Outro risco que o ex-presidente queria evitar era a pulverização de atos esvaziados pelo país. O discurso oficial é o de que ninguém será impedido de se manifestar, mas nos bastidores há pressão para que a manifestação de março se concentre no Rio. A primeira medida foi garantir que os principais aliados estejam em Copacabana. Os governadores Tarcísio de Freitas, de São Paulo, e Cláudio Castro, do Rio de Janeiro, vão ao evento, além de deputados influentes no bolsonarismo como Nikolas Ferreira e Gustavo Gayer, que recuaram dos atos em Belo Horizonte e Goiânia. Em São Paulo, Zambelli manteve a convocação, e por isso outro ato foi anunciado por Bolsonaro, na Avenida Paulista, em 6 de abril, para isolar Zambelli. Em Recife, Bolsonaro deu um recado aos apoiadores sobre manifestações. “Procure saber qual é a pauta e quem estará organizando esse momento”, afirmou.

Além das grandes manifestações no Rio e São Paulo, Bolsonaro vai colocar o pé na estrada e exibir o apoio de eleitores nas redes sociais. Em Vitória de Santo Antão, um título de cidadão honorário foi recebido em cima de um carro de som, repleto de políticos aliados. As cenas devem ser replicadas em outros cantos, com um roteiro traçado pelo ex-ministro do Turismo Gilson Machado. “Vamos percorrer todo o país. Temos inúmeras homenagens municipais para receber”, projeta. Os próximos destinos serão Rio Grande do Sul, Tocantins e Rondônia. Além dos títulos, o ex-presidente deve aproveitar o calendário das feiras agropecuárias, que reúnem majoritariamente eleitores do capitão.

Além da demonstração de apoio interno, Bolsonaro tenta emplacar no exterior a imagem de que é perseguido politicamente. O seu “embaixador” na ofensiva é o deputado federal e filho Eduardo Bolsonaro (PL-SP), que conduz uma campanha centrada na crença de que a gestão do aliado Donald Trump poderá aplicar sanções ao Brasil que inibam a atuação do Supremo. O deputado se reuniu, por exemplo, com a congressista republicana Maria Elvira Salazar, que apresentou um projeto de lei para cassar o visto americano de autoridades estrangeiras que violem os princípios da Primeira Emenda da Constituição americana, que discorre sobre liberdade de expressão. No último dia 22, no CPAC, maior evento conservador do mundo, Eduardo recebeu uma saudação de Trump. “Diga olá para o seu pai. Muito obrigado. Um grande gentleman e a sua grande família”, declarou em discurso. Outra figura articulada com os Bolsonaro é o popular apresentador de podcast Patrick Bet-David, que veio ao Brasil entrevistar o ex-presidente e publicou quase três horas de conversa. Os dois traçaram paralelos entre Trump e Bolsonaro e expuseram, sem provas, teorias de que o governo de Joe Biden teria usado recursos de impostos para interferir nas eleições de 2022 no Brasil. No CPAC, Bet-David classificou Moraes como “um tirano no mais alto nível”. Os organizadores do ato em Copacabana acreditam que jornalistas estrangeiros estarão presentes e nutrem a esperança de que integrantes de governos e Parlamentos estrangeiros também compareçam à manifestação.

A agitação em várias frentes tem também o objetivo de pressionar politicamente o Congresso. Diante de um cenário de poucas possibilidades no Judiciário, bolsonaristas apostam no êxito do PL da Anistia, um conjunto de sete projetos de lei que tramitam juntos na Câmara sob a relatoria de Rodrigo Valadares (União Brasil-SE). “A aceitação avançou bastante no Parlamento. Tem gente da centro-esquerda que disse ‘meu partido é contra, mas eu sou a favor’”, afirma o deputado. Uma das estratégias é aproveitar a troca de comando no Congresso. “Temos luz verde para trabalhar pela obtenção dos votos. A presidência da Câmara não vai obstar a colocação do tema em pauta”, afirma Ricardo Salles (Novo-SP). Apesar de o PL da Anistia ser para os executores do 8 de Janeiro já condenados, o ex-presidente pode ser beneficiado, seja pela repercussão política, seja pela possibilidade de que a interpretação desse “perdão” se estenda a ele. “Nosso plano A é Bolsonaro, o plano B é Bolsonaro e o plano C é Bolsonaro”, diz o deputado Eros Biondini (PL-MG). A saída política é a que mais tem chance de algum êxito, mesmo que pequena. “As pesquisas mostram que Bolsonaro tem chance de ganhar de Lula. Com isso, o Centrão pode pressionar o presidente por mais emendas, cargos, dinheiro, em troca de barrar o PL da Anistia”, avalia o cientista político Eduardo Grin, da FGV.

Todas essas movimentações têm o objetivo comum de manter a militância bolsonarista em pé e viabilizar o ex-presidente — ou quem ele indicar — na eleição de 2026. Bolsonaro insiste que será candidato, apesar da difícil situação judicial. “Se ele entregar os pontos agora, reforça a sensação de que já está condenado e fora do jogo em 2026. Mas o STF não deve se intimidar com a pressão das ruas”, afirma Grin. O plano de Bolsonaro continua sendo o de lançar sua candidatura mesmo se o pior acontecer — a prisão ao final do julgamento no Supremo (os ministros do STF querem encerrar o caso neste ano). Pode repetir, assim, o que Lula fez em 2018. Na época, o petista, que estava na cadeia, esperou até o último momento para anunciar que sairia da disputa, abrindo espaço para o vice, Fernando Haddad. Apesar dos sinais evidentes de que sua situação jurídica é grave e praticamente irreversível, Bolsonaro coloca toda energia para mobilizar eleitores e aliados, dentro da tentativa de provar sua inocência e se manter vivo politicamente. A batalha, porém, não será nada fácil.
Publicado em VEJA de 28 de fevereiro de 2025, edição nº 2933