‘Ruptura’: Como a arquitetura e o design criam a opressão – 07/04/2025 – Ilustrada

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Marianne Wenzel

A quantidade de referências em “Ruptura” é tão excessiva quanto a luz branca dos escritórios da empresa fictícia Lumon, inventora de um procedimento neurocirúrgico adotado nos funcionários de um de seus departamentos para que eles esqueçam quem são fora do ambiente profissional. Arte, fotografia, literatura e até mesmo uma disciplina tão árida quanto o urbanismo contribuem para a coerência de um roteiro que trata, no fim das contas, de controle, isolamento e dissociação.

De alguma forma, no entanto, nenhuma dessas áreas sobressai nas análises a respeito das metáforas que nos bombardeiam ao longo dos episódios. Quem conseguiu esse feito foi, em primeiro lugar, o design. Depois, a arquitetura. Dois campos que se entrelaçam, e por isso caminham juntos na constituição da marcante ambiência dos mundos abordados na história: o do trabalho e o da vida pessoal.

Na esfera corporativa, a locação que representa o exterior da sede da Lumon é um antigo edifício da AT&T, construído entre 1959 e 1962 para abrigar seu centro de pesquisas. Um dos últimos projetos do arquiteto e designer de origem finlandesa Eero Saarinen, a caixa envidraçada em Nova Jersey contém um generoso átrio cheio de luz natural, pensado para estimular a convivência.

Algo que, na ficção produzida por Ben Stiller, não acontece: o térreo atua só como lugar de passagem, a partir do qual os empregados operados acessam um pavimento labiríntico, sem janelas e com salas de pé-direito baixo —uma planta desenhada para evitar o encontro, gerar contenção e embaralhar a noção de tempo.

Ninguém usa o aparentemente único espaço de estar, o lounge em frente ao elevador com quatro largas poltronas verdes de couro, modelo concebido por Henry P. Glass no pós-guerra. Assim como, num canto da sala da gerência, a convidativa poltrona Fardos, criada nos anos 1960 pelo brasileiro Ricardo Fasanello, atravessa intocada as duas temporadas.

Não é o caso da igualmente vintage 620, de Dieter Rams, na qual Gemma, papel de Dichen Lachman, se acomoda para seus exames de sangue, parte de outro misterioso protocolo ao qual é submetida. Nem das cadeiras Nimrod, design de 2000 de Marc Newson, que, na segunda temporada da produção, decoram a sala onde um empregado casado pode receber a esposa, apesar de não se lembrar dela.

Nessas situações, porém, os estofados estão longe de oferecer acolhimento. É como se servissem somente para fins estéticos, evocando a sensação de conforto sem, de fato, proporcioná-lo.

O design, aliás, desorienta o espectador. Vemos itens que remetem às décadas de 1950 a 1970 —a exemplo do aparelho de som de parede na suíte de Gemma, também de Dieter Rams para a Braun, e móveis de escritório da Olivetti, clássicos do design italiano— convivendo com peças contemporâneas, como a já citada Nimrod. Há computadores de tubo, mas também smartphones. Tudo para acentuar nossa confusão temporal. Funciona.

Da porta da firma para fora, assim como os “innies” (persona dos funcionários) se transformam nos “outies” (a pessoa da “vida real”), a ambientação também muda. Mas o isolamento permanece. Somos transportados a subúrbios e a centros urbanos despovoados, casas apartadas, restaurantes vazios. Mesmo quando os “innies” são premiados com uma excursão ao ar livre, o destino é um cenário natural absolutamente inóspito, tão gelado e desabitado quanto os corredores da Lumon.

Já os interiores das casas passam a impressão de alguma intimidade. Às vezes, isso não tem nada a ver com o mobiliário, mas, sim, com a iluminação indireta —abajures, arandelas, pendentes— com luz amarelada, que traz a ideia de aconchego, bem ao contrário do escritório. Mesmo a moradia mais espartana e sem identidade de todas, a do protagonista, Mark S., papel de Adam Scott, não parece tão ruim graças a esse recurso. Ainda assim, ele nos lembra o quanto todos estão no escuro quanto ao que ocorre dentro dos limites da Lumon.

Há algumas pérolas da arquitetura e do design também nos ambientes domésticos —sempre relacionadas a famílias que aparentam ser financeiramente estáveis ou mais estruturadas. A primeira é a casa de Devon, papel de Jen Tullock, e Ricken, vivido por Michael Chernus, erguida em 1949 por Kaneji Domoto, discípulo do arquiteto Frank Lloyd Wright, autor da famosa Casa da Cascata: uma construção de madeira, pedra bruta e vidro, cenário comparável à imagem de um retiro literário. A produção de Ricken, voltada à autoajuda, explica a prosperidade do casal.

Já a morada de Burt G., personagem de Christopher Walken, casado com seu parceiro há mais de duas décadas, leva a assinatura de Gerald Luss. Finalizado em 1955, o projeto traz os mesmos madeira e vidro, mas os combina com blocos de concreto aparente. Os elementos resultam num pavilhão integrado, transparente e com um quê de crueza, exatamente como a conversa que se dá ali entre os donos da casa e Irving, encarnado por John Turturro, iluminada pelo escultural pendente da jovem dupla Ben & Aja Blanc.

A casa mais formal de todas é a de Jame Eagan, personagem de Michael Siberry, CEO da Lumon, uma residência de estrutura metálica e vidro desenhada pelo arquiteto contemporâneo Thomas Phifer —na série, ambientada quase como uma galeria de arte com móveis de estúdios contemporâneos, como Sunshine Thacker, John Pump, Hannes Grabin e Erin Sullivan. Mas não há espaço arejado que resolva a relação entre ele e sua filha, a herdeira Helena Eagan, ou Helly R., vivida por Britt Lower, como fica evidente durante a cena do café da manhã.

Em “Ruptura”, design e arquitetura estão mais do que entrelaçados. Estão amarrados. Mas, por melhores que sejam, nem sempre melhoram a qualidade de vida ou harmonizam as relações entre seus usuários. Este é um ideal modernista que, infelizmente, perdeu a validade.

Ou, como diria Seth Milchik, vivido por Tramell Tillman, com seu rebuscado vocabulário: o que temos aqui é nada menos que a encarnação de um princípio estético outrora reverenciado —um ideal modernista concebido no fulgor de um tempo que acreditava, de coração e de cálculo, na redenção através da forma.

Contudo, como tantas relíquias de um entusiasmo pretérito, ele agora se vê relegado ao museu das intenções bem-intencionadas, onde repousa, ainda pulsante de significado, mas irrevogavelmente desprovido de aplicabilidade prática na tessitura do presente.



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