Cynthia Araújo
Nos últimos dois meses, conversei com Thiago Amaral e Vinicius Calderoni sobre a doação de rim entre os dois amigos. Você pode conferir a primeira parte deste texto em https://www1.folha.uol.com.br/blogs/morte-sem-tabu/
O jantar
Thiago Amaral, Vinicius Calderoni e Xaxá ouviram, em um jantar, que o avô de outro amigo, Luiz Perez, tinha morrido precocemente em decorrência de uma insuficiência renal. No dia seguinte, sem combinar, tanto Thiago como Xaxá enviaram a Vinicius uma mensagem confirmando que sua disponibilidade para a doação de um rim era real. “Eu desabei de emoção, de maravilhamento e gratidão”, conta Vinicius.
Como a prova cruzada (crossmatch) de Thiago deu negativo – o que significa que o rim é adequado para o transplante -, apenas ele continuou a realizar o processo de habilitação para a doação.
Após diversas consultas e mais de 70 exames, ele estava ainda mais convencido da sua decisão de ser o doador do rim de que Vinicius precisava. Ele havia sido informado dos dados que demonstram que essa doação não representa riscos adicionais a longo prazo, e que doadores podem até mesmo viver mais do que não doadores (possivelmente porque apenas pessoas saudáveis são aceitas para a retirada do órgão).
Enquanto o amigo era submetido aos testes necessários, Vinicius lidava com uma nova angústia: a de questionar o seu merecimento para aquele gesto tão imenso. Era ele digno de tamanho amor? Digno de que alguém realizasse uma cirurgia – que, ainda que geralmente segura, não deixa de ter riscos, como qualquer cirurgia – para ajudá-lo? Digno de que alguém abrisse mão de uma parte de si mesmo?
A dúvida era dissipada pelos encontros com Thiago e Xaxá, que já imaginavam a sua história sendo contada no teatro; pelas conversas com os médicos; pela necessidade irremediável. Principalmente, o que tranquilizava Vinicius era a completa entrega de Thiago para o ato. A sua vontade genuína de realizar a doação.
E se vocês brigarem?
Na avaliação psicológica que faz parte do processo, Thiago respondeu a diversas perguntas: se ele esperava algo da doação, algum tipo de retribuição afetiva ou financeira, se havia alguma espécie de relação comercial entre ele e Vinicius.
– E se vocês brigarem, se ele escrever um livro e nem te mencionar?
– Não vai acontecer, mas, se acontecer, tudo bem. Não estou fazendo isso por esperar algo em troca.
A psicóloga explicou que é comum, entre doadores vivos, especialmente parentes, que a doação se torne uma moeda de troca, uma espécie de elemento de chantagem para a cobrança de benefícios futuros.
Ela também perguntou sobre o apoio que Thiago tinha em relação a sua decisão pela doação. Ele explicou que a mãe o apoiava muito, mas o pai não. E também contou que algumas pessoas estranhavam o ato, mas que ele estava muito seguro. O doador tem a garantia de que pode desistir a qualquer momento até a realização da cirurgia e, para ele, essa segurança era importante.
O transplante
A legislação brasileira prevê que a disposição gratuita de órgãos é permitida na forma da Lei n. 9.434/1997, que foi regulamentada pelo Decreto n. 9.175/2017. As doações entre pessoas vivas não relacionadas (que não sejam cônjuges, companheiros ou parentes até quarto grau) depende de autorização judicial, salvo nos casos da doação de medula óssea (artigos 27 e 28).
Por isso, a realização das cirurgias de Thiago e Vinicius dependia de um processo judicial, o qual, para ser iniciado, exigia o cumprimento de diversos requisitos legais, tais como a realização de exames pelo doador e o parecer do Comitê de Bioética ou Comissão de Ética do hospital onde aconteceria a retirada e o transplante.
O transplante foi agendado para o dia 28 de fevereiro de 2025. Vinicius estava ficando debilitado e acabou sendo internado para iniciar hemodiálise. “No dia da internação, a mãe dele, Regina, me deu um abraço tão forte, tão amoroso e emocionado, que confirmou todas as minhas certezas. Eu sabia que era isso que tinha acontecer. E estava feliz por poder fazer isso. Todo o resto era muito pequeno”.
No dia 21 de fevereiro, o documento com a autorização judicial foi recebido pelo hospital e, sete dias depois, Vinicius recebeu o rim de Thiago.
Coração Expandido
Thiago, Vinicius e Xaxá escrevem uma peça teatral sobre esperançar, que absorveu o tema que eles viveram juntos. A partir da narrativa do renascimento que o transplante proporciona, e de quanto o compartilhamento de um órgão por duas pessoas transcende não só o corpo, a ideia é levar a importância da doação para o debate público.
A partir dos palcos, os amigos querem aumentar a consciência sobre as possibilidades de doação entre pessoas vivas e chamar as famílias a refletir sobre o assunto nos casos de falecimento.
Segundo dados do Ministério da Saúde, um único doador falecido pode beneficiar pelo menos dez pessoas e, em muitos casos, salvar a vida de alguém. O SUS possui o maior programa público de transplantes do mundo. Mas a desinformação ainda impede muita gente de doar, ou de autorizar a doação quando um familiar morre.
Enquanto termino este texto, dois meses depois do transplante, Vinicius está com o novo rim em turnê de lançamento do álbum “Sentido”, da sua banda 5 a Seco. Thiago também está recuperado da cirurgia e voltou aos palcos com a peça infantojuvenil “A História sem Fim“, vencedora do Prêmio APCA 2024 de Melhor Espetáculo Adaptado. Ele também tem um novo órgão, que deseja que dure muito tempo: o coração expandido.
“Thiago não é um amigo-irmão, é um irmão, sem asterisco. Ele sempre leva a luz por onde passa e trouxe essa luz para mim”.
Vinicius Calderoni
Um doador vivo pode doar um dos rins, parte do fígado, parte da medula ou parte dos pulmões. Mas, para ser possível a doação, é necessário que haja compatibilidade, a começar pela tipagem sanguínea.
Para saber mais e tirar dúvidas sobre transplantes, acesse: https://agenciabrasil.ebc.com.br/saude/noticia/2024-09/doacao-de-orgaos-conheca-exigencias-e-tire-duvidas-sobre-transplantes