De volta à estaca zero na catástrofe do clima – 16/03/2025 – Marcelo Leite

Date:

Compartilhe:

A escritora e Nobel Annie Ernaux lavrou incontáveis frases impiedosas sobre si, seu tempo e sua gente, como a que está no livro “Os Anos”: “De tanto fazer amor com o mesmo homem, as mulheres [na faixa dos 40 em 1980] tinham a impressão de ter voltado a ser virgens”.

Consegue entender o paradoxo até mesmo quem vive a limitação de pertencer ao gênero masculino e o desgosto de presenciar o mundo em 2025, no limiar da perda total. Mesmice e falta de imaginação expulsam da consciência qualquer noção –mas não a expectativa– sobre agruras e prazeres que o sexo pode trazer.

Em situação parecida se encontram jornalistas veteranos na pauta da crise do clima. De tanto escrever sobre o mesmo assunto, têm a impressão de ter voltado a ser focas (novatos). Continuam a fazê-lo mesmo corroídos pela insegurança na própria capacidade de gerar luz, pois condenados à expectativa ingênua.

Desânimo e apatia tomam conta de quem se debruça sobre a carta divulgada por André Corrêa do Lago, diplomata escolhido para presidir a COP30 em Belém. Não por demérito do embaixador, que merece admiração por aceitar a pior missão do mundo, conduzir o fracasso da trigésima negociação sobre a questão mais importante do mundo.

Um colunista exasperado poderá lembrar o dito segundo o qual há coisas boas e coisas novas no texto apresentado. O problema é que as coisas boas (as visíveis no documento) não são novas e as coisas novas (da conjuntura nele omitida) não são boas.

A carta não economiza nas palavras certas para abordar a gravidade da emergência climática: mutirão, escolha, catástrofe, unidade, resiliência, otimismo. “Esses valores realçam nosso espírito coletivo em um século que testará a capacidade de adaptação e inovação de nossa espécie na construção de um futuro comum.”

O sentido de urgência está presente na letra do documento, ainda que não no espírito comedido (papai-e-mamãe, se poderia dizer) da diplomacia. Como bem apontaram analistas ambientalistas, o tabu dos combustíveis fósseis só mereceu menção passageira, um recalque para lá de sintomático.

Eis o que não pode ser nomeado: inexiste futuro para a questão climática sem reduzir a zero ou ao menos neutralizar, antes de 2050, a emissão de carbono pela queima de petróleo, gás natural e carvão mineral. Mas ela segue em alta, na espiral da morte que deu título ao livro de Claudio Angelo e que em 2016 parecia alarmista.

A hipérbole se mostra de todo adequada para a conjuntura internacional incendiada pelo valentão negacionista Donald Trump. É nula a chance de países ricos aceitarem investir US$ 1,3 trilhão por ano em mitigação e adaptação ao aquecimento global, numa época em que a Europa prioriza o rearmamento.

O Brasil, em que pesem as boas intenções do Itamaraty e de Marina Silva, faz mais parte do problema do que da solução. O maior projeto nacional é furar poços na foz do Amazonas, levando a Petrobras galgar posições na lista das 36 empresas de combustíveis fósseis que emitem 50% do carbono mundial (em 2023 era a 21ª).

De tanto falar em transição energética, Lula deixa a impressão de ter voltado a ser Vargas.


LINK PRESENTE: Gostou deste texto? Assinante pode liberar sete acessos gratuitos de qualquer link por dia. Basta clicar no F azul abaixo.



Leia Mais: Folha

spot_img

Related articles

O governo sérvio nega o uso de ‘Sonic Arma’ em protesto – DW – 17/03/2025

Presidente da Sérvia Aleksandar Vucic negou que suas forças policiais usassem uma "arma sônica" proibida para dispersar...

“O vírus ainda está circulando. Entre duas ondas, ele fica tapi em algumas pessoas ”, lembra Karine Lacombe, infectiologista

William Dab: "Cinco anos depois, a França está esquecendo que as fronteiras sobre...

Os deportações dos EUA para El Salvador terão “ramificações maiores” | Série digital

"O governo Trump pode dizer que a Venezuela está intencionalmente inundando os Estados Unidos com membros específicos...

Japão para implantar mísseis de longo alcance capazes de atingir a Coréia do Norte e a China | Japão

Gavin Blair in Tokyo O Japão está planejando implantar mísseis de longo alcance em sua ilha sul de...