Júlia Bolliger
“Lygia Clark: Retrospectiva”, com curadoria das alemãs Irina Hiebert Grun e Maike Steinkamp, chega à Neue Nationalgalerie com a missão de apresentar a obra da artista brasileira ao público alemão. Fundado em 1968 e especializado em arte do século 20, o museu berlinense começa, enfim, a tentar enxergar o mundo além do continente europeu.
“Sempre tivemos foco muito forte na Europa e América do Norte, nunca antes houve uma exposição com ênfase no Brasil neste museu. Por isso, esse projeto é muito importante para a internacionalização da casa”, afirmou Joachim Jäger, vice-diretor da instituição, em entrevista coletiva na semana passada.
Lygia teve obras expostas no continente desde os anos 1960. Sua primeira individual europeia foi organizada pelo filósofo Max Bense, em 1964, em Stuttgart, também na Alemanha. Em 1997, a 10ª Documenta de Kassel consolidou sua importância para o mundo da arte internacional. “O trabalho de Lygia Clark é conhecido no circuito artístico alemão, mas não pelo público geral. Consideramos essencial torná-la mais visível na Alemanha”, diz a curadora da mostra Hiebert Grun.
“Lygia Clark: Retrospectiva” abre na sequência da primeira grande exposição sobre Clark em uma instituição pública do Reino Unido, a Whitechapel Gallery, e de “Lygia Clark: Projeto para um Planeta“, na Pinacoteca de São Paulo.
“Não por acaso, o legado de Lygia está sendo revisitado depois de muitos anos. Em tempos de polarização e de ascensão do conservadorismo, uma obra contracultural como a dela é especialmente inspiradora”, afirma a curadora-chefe da Pinacoteca, Ana Maria Maia.
Exibir uma artista como Lygia Clark, que confronta as noções tradicionais de museu, é um desafio, relatam as curadoras da instituição alemã. Na Neue Nationalgalerie, a retrospectiva acontece na sala de exposições projetada por Mies van der Rohe, ambiente cercado por paredes de vidro com mais de 2.000 metros quadrados de área e pé direito imponente de oito metros de altura, que se opõe à obra da artista.
Didática e organizada em ordem cronológica, a mostra fica atrás de uma cortina verde-escura, por onde o visitante primeiro encontra paredes expositivas brancas com cerca de quatro metros de altura, quebrando o grande espaço em salas menores, abertas e interconectadas, mas que ainda remetem ao cubo branco.
O primeiro percurso inclui a série de abstração geométrica “Composição”, mostrando a trajetória da artista para expandir e romper com os limites da pintura, com “Quebra da Moldura” e “Descoberta da Linha Orgânica”.
Em seguida, o espectador se vê diante das explorações arquitetônicas de Clark, incluindo “Maquetes” e “Estruturas de Caixas de Fósforos”, nas quais já começa a trabalhar com o espaço geométrico de forma dinâmica e móvel. Por fim, o percurso apresenta o espaço “A Pintura como Objeto”, com obras da série “Espaço Modulado”, “Contra Relevo” e “Casulo”.
O visitante, então, é levado à segunda parte da mostra, que introduz os “Bichos”, compostos nos anos 1960 e 1970, e inaugura a área na qual as obras convocam o espectador a tornar-se parte ativa da arte, com réplicas para serem manipuladas, além dos originais.
Na sequência, seis “Trepantes”, uma “Obra Mole” e uma réplica para ser manuseada, e “Caminhando”, em que o visitante é convidado a colar e cortar sua própria fitas de Möbius, superfície formada ao torcer uma faixa de papel e colar as extremidades, na qual o fora o dentro se tornam um só, ao mesmo tempo.
“Mesmo que os primeiros trabalhos de Lygia Clark não tenham sido feitos para serem tocados, ela já se preocupava, em suas pinturas da década de 1950, em quebrar as barreiras visuais, dissolvendo o limite entre a obra e o espectador para estabelecer uma conexão mais próxima com o espaço ao redor e a vida real”, diz Grun.
O percurso segue com uma mesa com os “Objetos Sensoriais” para serem manuseados, “Máscaras Sensoriais”, dispostas em pedestais para serem vestidas, e “A Casa é o Corpo”, que convida a percorrer a instalação que simula a experiência do nascimento. No final do trajeto, um espaço circular com parede translúcida convida o visitante a deitar e interagir livremente com “Objetos Relacionais”, encerrando o percurso com a fase de exploração terapêutica da artista, a “Estruturação do Self”.
Todas as réplicas da exposição foram produzidas na Europa em colaboração com a Associação Cultural Lygia Clark, sob coordenação de Alessandra Clark, neta da artista. “Para mim, esta é a exposição mais linda que já vi, parece que o trabalho dela foi feito para estar aqui. Estamos dentro do prédio, mas sentindo que estamos fora, e as curadoras conseguiram montar salas íntimas nas quais, ao mesmo tempo, a obra respira e têm espaço”, diz Alessandra.
Para Cathérine Hug, curadora da Kunsthaus Zurich, que recebe a mostra a partir de novembro, o atual desejo europeu de destacar Lygia Clark depois de tanto tempo “talvez se deva ao fato de sua arte ter se tornado tão física, e as pessoas na Suíça e na Alemanha serem possivelmente mais retraídas ao toque que, quem sabe agora, isso esteja mudando”.
Exposições como esta indicam que o trabalho de Clark tem, além da importância histórica, relevância nos dias de hoje. “É uma arte da micropolítica, da vitalização do sujeito, da aposta de que as mudanças sociais coletivas começam na reivindicação dos direitos civis, da liberdade, da sensorialidade”, afirma Ana Maria Maia.
“Diante de um mundo que está fechando bordas e encurtando possibilidades, podemos, assim, continuar acreditando nas possibilidades e na insurgência.”
