Quando algum democrata lembra que a liberdade de expressão dá aos outros o direito de exprimirem ideias que nós consideramos abjetas, aparece sempre um filósofo amador que cita o paradoxo da tolerância de Karl Popper, que estudou com a ajuda da seguinte bibliografia: um meme.
Normalmente, o filósofo amador leu atentamente um quadrinho que circula na net. “Como defendeu Popper em ‘A Sociedade Aberta e os Seus Inimigos’,” diz inevitavelmente o filósofo amador, “tolerância ilimitada pode levar ao desaparecimento da tolerância”. “Quando estendemos a tolerância àqueles que não toleram, os tolerantes acabam sendo destruídos e a tolerância com eles.”
De fato, a citação está naquele livro de Popper. O filósofo amador identifica bem a origem da frase, até porque isso também aparece no meme. O que o meme não diz é que a frase está numa nota de rodapé.
Nada contra as notas de rodapé, nem contra a expressão de ideias importantes por lá. Acontece que as notas de rodapé têm letras mais miudinhas, o que pode levar o leitor ao cansaço.
Pode ser que isso explique a razão pela qual o meme também não diz que a frase que continua aquela que o filósofo amador cita é: “Com esta formulação não pretendo, por exemplo, dizer que devemos sempre suprimir a expressão de filosofias intolerantes”.
Reparem que não é uma ideia que surge num capítulo diferente, nem noutro ponto da vasta obra de Karl Popper. É mesmo a frase seguinte.
Que queria, então, dizer Karl Popper? Proponho que continuemos a ler, lamentando embora que o texto, na versão original, não venha acompanhado de bonecos.
Diz assim: “Contanto que possamos contrariar [os discursos intolerantes] com argumentos racionais e mantê-los sob o escrutínio da opinião pública, a sua supressão seria extremamente insensata”.
Talvez a expressão “extremamente insensata” seja muito grande, ou entediante, para caber num quadrinho e fosse perturbar a admirável brevidade do meme, que assim fica impedido de revelar que o que Popper diz é que devemos parar de tolerar os intolerantes quando eles recorrem à violência.
Mas é uma pena, porque ficamos perante o fenômeno estranho e, creio, inédito de ter algo circulando na internet que apresenta a realidade de forma imprecisa e meio distorcida. Espero que este seja um único exemplo.
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