David Lynch nos levou ao submundo profundo da mente humana – 24/02/2025 – Ilustríssima

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Marcelo Miranda

[RESUMO] Texto comenta as principais recorrências temáticas e estilísticas da obra de David Lynch, um dos principais artistas do cinema. Dos primeiros curtas a “Twin Peaks: O Retorno” (2017), sua obra-prima derradeira, o cineasta esculpiu seus mundos únicos, espantosamente excêntricos e ao mesmo tempo tão verdadeiros. Mostra no CineSesc até quarta (26) traz os principais filmes do diretor.

Uma mulher sentada escreve carta ao seu grande amor. Ela não tem as pernas. Enquanto ouvimos o texto escrito narrado em off, entra em cena um enfermeiro, que faz curativo num dos restos de perna da mulher. Começa a jorrar sangue incessante. O enfermeiro tenta, por cinco minutos e sem sucesso, conter a sangueira. A mulher ignora e ainda escreve a carta.

A cena, única em toda a duração do curta-metragem, é de “A Amputada”, de 1974. Resume à perfeição o cinema de seu autor, o diretor norte-americano David Lynch, falecido em 16 de janeiro, quatro dias antes de completar 79 anos.

Toda a obra de Lynch se fixa na premissa brevemente desenvolvida em “A Amputada”: personagens jogados em situações nas quais eles não têm nenhum controle e, exatamente por isso, acabam expostos a todo tipo de estranhamento e acontecimentos insólitos, fora do que seria chamado de normal ou convencional.

Em Lynch, o que move os personagens é a busca por amor e afeto. Na impossibilidade de alcançar objetivo tão nobre, mergulham em atmosferas de pesadelo e lidam não com forças externas ao seu mundo, mas justamente com angústias, anseios e medos de si próprios, sentimentos já existentes e agora extravasados.

Nós, espectadores, testemunhamos o extravasamento, um vômito de delírios que saía da inventividade enigmática de Lynch. É como se o diretor nos colocasse cientes dos acontecimentos a partir de um pós-acontecimento, o que vem depois, sem se importar em apresentar o pré, o fato anterior.

Diz-se que a autoralidade de uma obra, especialmente a cinematográfica, está na capacidade de o realizador criar universos particulares, de brotar das imagens em movimento e dos sons em profusão realidades que, dentro da tela, tenham suas características próprias e, nem por isso, deixem de refletir o universo exterior —no caso, o mundo dito “real” que está ao redor de quem assiste ao filme.

Nesse sentido, David Lynch poderia entrar no rol dos autores. E disso não há muitas dúvidas —menos pelas propaladas e falsas incompreensões de seus filmes do que pela genialidade em esculpir os tais mundos tipicamente “lynchianos”, o que não significa serem mundos de mentira ou de fantasia.

Uma outra marca de autoralidade também pode ser a recorrência de temáticas e olhares. Mais uma vez Lynch se enquadra, o que estimula a recuar a “Eraserhead”, de 1977, seu primeiro longa-metragem, e partir dele para lançar ideias sobre toda a obra posterior.

“Eraserhead”, antes de ser um filme perturbador, é o filme perturbado de um homem perturbado. Lynch tinha 30 anos quando fez este trabalho, em um período complicado. A namorada estava grávida, mas o bebê não foi planejado. A criança, Jennifer, que anos depois se tornou também cineasta, nasceu com várias deficiências nos pés, exigindo cirurgias de urgência.

A paternidade e as dificuldades físicas da bebê impulsionaram o projeto de “Eraserhead”, auxiliado por uma bolsa do American Film Institute em Los Angeles que permitiu a realização do filme.

A pensar na obra seguinte, como “O Homem Elefante” (1980), “Veludo Azul” (1986), “A Estrada Perdida”, (1997) e “Cidade dos Sonhos” (2001), é perceptível o quanto Lynch se manteve fiel ao espírito de sua obra original, acrescentando novos elementos e sempre tratando de si mesmo e do mundo “real”.

“Eraserhead” traz vários tipos de incômodos estéticos, a começar pelo visual em preto e branco que parece retratar algum não lugar habitado por não pessoas que tentam seguir uma não vida.

É um universo de negativismo e pessimismo, no qual tudo caminha contra todos. Logo nos minutos iniciais, o protagonista Henry, vivido por Jack Nance, caminha por fábricas barulhentas. Uma série de gags tenta atrapalhar esse trajeto: a poça de lama, a porta e as luzes do elevador, os cachorros.

Mesmo quando chega à casa da namorada, Henry não fica em paz. A família da moça é cheia de disfuncionalidades, o galeto em seu prato ganha movimento próprio ao ser cortado e a mãe de sua pretendente o assedia —cena repetida, com variações, em “Coração Selvagem”, 13 anos depois.

Todas as barreiras enfrentadas por Henry o deixam sem controle do ambiente onde transita. O delírio final total se dá com a notícia de que a namorada teve um filho —ou, como a mãe dela diz, “uma coisa que está no hospital”, no que a garota retruca, “ainda não sabemos se é mesmo um bebê, mãe!”.

O olhar aparvalhado de Henry e o nariz que sangra ao saber da notícia da criança ilustram toda a galeria de personagens de Lynch —e também a perplexidade de seu público diante de um cinema tão especial.

As gags se acumulam. Agora casado, Henry é rejeitado pela esposa na cama. O bebê é um monstrinho embrulhado em algo que mais parece gaze do que fronha. O uso do som, outra forte característica de Lynch, amplifica-se. O choro do bebê, cada vez mais alto e estridente, provoca a ruptura com a mãe e o fim do casamento.

Paralela e continuamente, ouvimos o barulho das máquinas que insistem em jamais parar. A trilha sonora é uma nota grave e contínua, e o uso desse tipo de recurso, tanto de sons externos, que em “Eraserhead” contêm a chuva, o ranger de dentes e a coçada de olho, quanto a nota contínua, tornaram-se marcas típicas de Lynch, indispensáveis ao tipo de sentimento que sua obra transmite.

A fruição de seus filmes depende muito do grau de riscos que eles nos fazem sentir. Se por vezes um “Coração Selvagem” (1990) pode parecer excessivo na série de citações e referências, “A Estrada Perdida” só é o grande trabalho que conhecemos porque Lynch desrespeitou os limites do convencional.

Se em “Império dos Sonhos” (2006) transparece o paroxismo do que de mais “estranho” o diretor é capaz de fazer, “História Real” (1999) tem na aparente simplicidade uma série de desafios ao óbvio que só um artista como Lynch, disposto a lidar com tabus, regras e manuais com naturalidade, poderia realizar com tanta economia de recursos.

O cinema de Lynch está sempre em busca de uma imagem de si mesmo. Existe em seus trabalhos a recorrência de personagens que se enxergam —ou que enxergam no outro alguma parte própria que desconheciam. “Eraserhead” tem isso quando Henry vê seu reflexo transmutado em outra figura, numa cena chave de indefinição.

Na série televisiva “Twin Peaks” (1990-1991), o agente Dale Cooper sonha consigo mesmo numa versão envelhecida. Nessa condição, ouve da assassinada Laura Palmer o nome do culpado por sua morte.

Tanto em “A Estrada Perdida” quanto em “Cidade dos Sonhos” e “Império dos Sonhos”, o personagem que se metamorfoseia em outro, ou mesmo que olha para a própria imagem dentro de outro contexto, surge quando há a quebra, a ruptura, tanto dos caminhos percorridos por essas pessoas quanto do filme enquanto objeto narrativo —é no embate entre o “eu” e o “outro eu” que se dá o embaralhamento estético e conceitual que provoca o típico curto-circuito de um filme de Lynch.

Os sonhos que parecem servir como epifanias aos enigmas nunca são óbvios. Sonhar, num filme de Lynch, pode revelar verdades, mas não é das experiências mais agradáveis.

A imagem de um palco também tem carga forte na transfiguração de personagens. Em “Eraserhead”, o devaneio de Henry mostra-o a assistir a uma criatura esquisita dançando e cantando num palco. Mesmo no preto e branco, é possível imaginar as cortinas vermelhas idênticas às de onde dança o anão de “Twin Peaks” ou canta ardorosa e falsamente a artista do Club Silencio de “Cidade dos Sonhos”, ou Isabella Rossellini a hipnotizar o público ao entoar “Blue Velvet” em “Veludo Azul”.

É de espetáculo, afinal, que também fala David Lynch, como está no sujeito com deformidades explorado pelo cientista em “O Homem Elefante”, na indústria de Hollywood como ambiente do inferno na trinca “A Estrada Perdida”, “Cidade dos Sonhos” e “Império dos Sonhos”, nas estripulias sensacionalistas do casal apaixonado de “Coração Selvagem”, na citada cantora de cabaré de “Veludo Azul”, nos coelhos e nas claques da série “Rabbits” (2002).

Para representar espetáculos, nada mais significativo do que um palco e alguém cantando, dançando ou simplesmente se apresentando (ou sendo apresentado) nele. Não por menos, quase todos os episódios de “Twin Peaks: O Retorno” (2017), grande obra derradeira de Lynch, têm pessoas cantando músicas etéreas por longos minutos.

O que subverte a visão espetaculosa das situações expostas nestes filmes é o caráter falso desses mesmos espetáculos. O homem elefante é um monstro de circo aos olhos dos outros, mas é um ser humano cheio de angústias e vontade de viver. A cantora de “Veludo Azul” encanta quem a ouve, mas sua vida pessoal é um redemoinho desenhado com os piores traços possíveis. A trilogia sobre Hollywood é formada por quebras do que viria a ser a imagem real do sucesso e da ilusão desse campo dos sonhos.

As fitas do casal de “A Estrada Perdida”, a interpretação quase ingênua de Naomi Watts em “Cidade dos Sonhos” e o declínio absoluto da personagem de Laura Dern próximo aos mendigos na Calçada da Fama em “Império dos Sonhos”, logo antes de ela escutar o grito de “corta” e revelar o artifício, caracterizam a noção de Lynch de que Hollywood é, sim, a terra dos sonhos, de fantasias e devaneios, e, por alimentar tal noção, é também um mundo de pesadelos, desilusões e assombros.

“Não há banda”, repete o apresentador do Club Silencio em “Cidade dos Sonhos”. Com sua consciência, Lynch convocou a todos nós a adentrar no submundo mais profundo da psique humana.



Leia Mais: Folha

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