Bárbara Blum
O salão Vanessa Hair, em Teresina (PI), é uma espécie de Meca dos cachos. Sua fundadora, Vanessa Barreto, acumula mais de um milhão de seguidores no perfil do Instagram em que compartilha as transformações de suas clientes —na maioria, mulheres negras que buscam um atalho para o penoso processo de transição capilar do liso químico para o cacheado natural— ou que buscam definição dos cachos e controle de volume dos cabelos crespos.
São procedimentos conhecidos, respectivamente, como desprogressiva e permanente afro —ou permanente black— e têm ganhado espaço no mundo da beleza. Eles vêm na esteira do interesse pela transição capilar, processo em que se deixa crescer o cabelo cacheado ou crespo sem retocar o alisamento para dar espaço aos fios naturais.
A transição, porém, pode ser demorada: há períodos em que duas texturas de cabelo convivem e pode envolver cortes grandes das partes lisas, o que acaba afetando o comprimento. A desprogressiva entra como uma ajuda: em vez de esperar o crescimento, aplica-se mais química nos cabelos para que eles fiquem cacheados. Assim, o processo pode se tornar menos trabalhoso.
O permanente black, por outro lado, é um procedimento parecido de definição dos cachos, mas acontece no cabelo sem química. Segundo Barreto, costuma vir da vontade de clientes de ter menos trabalho para cuidar do crespo natural ou do desejo de ter cabelos mais compridos —o encolhimento dos crespos é ponto de frustração para algumas pessoas.
Paredes rosa-bebê e espelhos em formato de coração emoldurados por luzes de LED recebem os clientes no Vanessa Hair Salon. Para alcançar os cachos dos sonhos, Barreto pede o dia inteiro. Com chegada prevista para o primeiro horário da manhã e saída, no mínimo, no final da tarde, dura ao menos dez horas a transformação capilar, muitas vezes registrada e compartilhada no Instagram da profissional.
O primeiro passo é o que Barreto chama de avaliação capilar, em que serão feitos testes na estrutura dos fios “para entender como o cabelo vai se comportar” durante o procedimento. Depois disso, ela agenda ao menos três sessões de detox capilar, com espaço de três dias entre elas.
“O detox prepara a fibra de cabelo para retirar metais pesados, acúmulo de procedimentos e sujidade”, diz a cabeleireira. Isso evita problemas no meio da permanente, que, por causa dos produtos usados, pode causar corte químico, que é quando o cabelo quebra em determinado ponto do comprimento por excesso de procedimentos. Nessa etapa, são usados produtos com componentes como o carvão ativado e extratos de gengibre e chá verde.
Embora um dos procedimentos seja apelidado de desprogressiva, o processo é parecido com o alisamento. Em ambos se usa a química para chegar ao formato e textura desejados nos fios.
Segundo a tricologista Alessandra Reis, proprietária do estúdio Flora Cachola, a estrutura dos fios deve ser alterada antes do início do cacheamento, com o alisamento inicial da haste capilar. “O objetivo é reduzir o volume dos cabelos e deixar o fio mais disciplinado”, afirma.
Os alisamentos fazem com que a proteína dos fios de cabelo se molde de uma forma diferente da estrutura original, segundo Fabiane Brenner, dermatologista da Sociedade Brasileira de Dermatologia (SBD). Ocorre uma remoção da proteína, que pode resultar em maior fragilidade do fio.
No salão de Barreto, ela evita produtos como amônia e tioglicolato. O formol, também usado em processos de alisamento, foi banido pela Anvisa em 2009. A dermatologista afirma que o formol é uma substância com muita absorção pelo couro cabeludo, que causa ardência e irritação. Além disso, existe um risco associado de câncer.
A cabeleireira opta pelo ácido tioglicólico adaptado, que tem substâncias como a arginina cistina para proteger os fios. A construção dos cachos não fica por conta da substância em si, que poderia alisar o cabelo, mas pelo uso dos bigudinhos, uma espécie de rolinho que prende os cachos e dá o formato desejado.
Na permanente, clientes podem escolher o tipo de cacho —menor e mais enrolado, ou maior e mais aberto. Na desprogressiva, Barreto explica que é necessário manter uma curvatura mais fechada, para evitar que o efeito cacheado se perca. “A diferença da desprogressiva é que a cliente já está com o cabelo alisado”, diz.
Brenner afirma que o ácido tioglicólico de fato é a opção mais segura do mercado hoje, mas que ainda falta maior regulamentação da Anvisa. Mesmo assim, são substâncias que causam algum dano à fibra capilar.
A segurança dos procedimentos é uma preocupação para a socióloga Luane Bento dos Santos, pesquisadora do tema e professora da UFF (Universidade Federal Fluminense). Ela afirma que a visão do cabelo crespo ou afro como um fardo tem impactos diretos na saúde.
“Uma pesquisa rápida com profissionais cabeleireiros mostrará que muitos produtos químicos utilizados nos salões provocam alergia e mal-estar. Estou falando de produtos para pessoas brancas também”, diz.
O enxágue, segundo Barreto, é parte essencial do processo e acontece ainda com os bigudinhos no cabelo. Se algum resíduo dos químicos permanecer nos fios, pode acontecer o corte químico depois da saída do salão. Para isso, ela faz um enxágue de 25 a 30 minutos.
Depois disso, o cabelo passa pela neutralização —feita por Barreto em três etapas. Ela usa produtos a base de bromato de sódio para interromper ação química das substâncias anteriores. Primeiro, ela aplica com os bigudinhos enrolados na cabeça. Depois, passa o produto durante a retirada deles. Enfim, vem outro enxágue.
O processo todo pode custar até R$ 1.200, dependendo do comprimento do cabelo.
“Nunca leva menos de um dia inteiro”, afirma. “O mais cedo que conseguimos terminar foi 17h. Já tive clientes que saíram meia-noite e casos delicados que acabaram às 3h.”
O esforço vale a pena para quem busca os procedimentos. A influenciadora Taysa Lais passou pela sessão pela primeira vez em 2021. Ela havia tentado a transição capilar natural duas vezes antes da permanente afro. “Mesmo eu entendendo que precisava romper com o padrão, não conseguia gostar”, diz.
Segundo Santos, a socióloga, “o cabelo e o corpo negro são vistos dentro de uma perspectiva evolucionistas: ‘cabelo bom’ é de branco e ‘cabelo ruim’ é de negro.”
Para Taysa, o processo facilitou o cuidado em relação ao que o cabelo natural dela demandava. O fato de envolver química não a afastou do procedimento. “Eu sabia desse risco, mas era muito tranquilo de cuidar.”
Na primeira aplicação, ela queria manter o comprimento. Na segunda, quis emular com a química a curvatura natural dos fios. Feliz em acompanhar o crescimento das raízes, ela adiou o retoque. “Foi muito importante para entender que existem outros caminhos”, diz, “que eu não precisava me forçar a gostar do meu cabelo”.
Segundo Barreto, as clientes que chegam até ela costumam reclamar do trabalho com o cabelo natural —não gostam do volume ou do esforço para pentear e finalizar.
“A permanente afro havia caído em desuso com a escova progressiva”, diz. “Agora, com a valorização da beleza natural, as pessoas buscam isso.”
Ela afirma que recebe muitas crianças no salão —algumas até aparecem em suas redes sociais. “Elas se emocionam, saem radiantes. Dizem ter vergonha do cabelo e ser motivo de piada na escola.” Barreto diz que faz o procedimento a partir dos oito anos de idade. Reis, a tricologista, recomenda que só seja feito a partir dos 16, por causa do tipo de produto usado.
Homens também procuram o procedimento, mas, segundo a profissional, não costumam gostar de ser filmados nas redes sociais.
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