Márcia Short retoma Banda Mel e denuncia exclusão no axé – 02/03/2025 – Ilustrada

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Lucas Brêda

Entre as músicas que são consideradas hinos do axé, pelo menos três ganharam o imaginário popular com a Banda Mel. “Prefixo de Verão”, “Baianidade Nagô” e “Crença e Fé” explodiram no começo dos anos 1990, quando Márcia Short assumiu, ao lado de Robson Moraes, os vocais do grupo, já conhecido por ter participado de uma revolução no fim da década anterior.

Com as irmãs Janete e Jaciara Dantas, além do cantor Buk Jones, a Banda Mel foi uma das primeiras a incluir músicas dos blocos afro, neste caso o então emergente samba-reggae, no repertório que levavam a seus trios elétricos. A maior dessas canções —e talvez a mais forte de todo o Carnaval baiano— foi “Faraó (Divindade do Egito)”, símbolo desse encontro entre blocos afro e bandas de trio que é a força motriz do próprio axé.

Neste ano, Márcia Short e Robson Moraes reativaram a Banda Mel para comemorar seus 40 anos de existência, justamente no ano em que a axé music celebra seu próprio aniversário de quatro décadas. Mas, diz a cantora, nem tudo é festa nessa história. “O embranquecimento do axé não precisa ser dito, ele está aí”, afirma. “Se eu ficar falando, parece que estou me referindo a pessoas, mas não é isso —é uma engrenagem.”

Ela fala sobre o já muito propalado processo de transformação do axé em indústria com força nacional, um movimento que veio acompanhado da ascensão de rostos brancos como ícones do gênero. Seu discurso, ela esclarece, não é contra Ivete Sangalo, Daniela Mercury ou Bell Marques, que “merecem seu lugar na sombra, porque o sol está aí queimando todo mundo”, ela diz, mas “as oportunidades não foram as mesmas”.

A história de Márcia de certa forma espelha sua mensagem. Os blocos e as grandes bandas do Carnaval de Salvador funcionam como empresas, que contratam os artistas e comandam a folia e sua trilha sonora. Ela trabalhou na Banda Mel no auge do grupo, tendo gravado o clássico disco autointitulado de 1992. Tinha “carteira assinada, carga horária e percentuais”. “Três dos quatro álbuns que gravamos foram discos de ouro e nós sequer recebemos aquele quadro para botar na parede.”

Criada para embalar o Bloco Mel em 1984, a Banda Mel contratou Márcia Short em 1989, depois de cerca de uma década em que ela cantava em bandas de baile e bares. A artista também vendia acarajé com a família para se sustentar, mas largou as duas profissões quando nasceu seu filho, Daniel. “Tive um filho neurotípico, então ou eu voltava para o acarajé ou cuidava dele —as duas coisas, não dava. E também não tinha com quem deixá-lo para ir cantar.”

A cantora terminou o casamento e voltou a morar com a mãe, o que a permitiu participar da audição para entrar na banda. “Cheguei e já gravei uma música. Não sabia o que era aquilo, só estava cantando no microfone e depois ouvi minha voz amplificada. Fiquei louca. Não tinha letramento, conhecimento, só estava maluca para voar, realizar meu sonho, de alguma forma pertencer àquele universo”, diz.

Foi quando entrou de cabeça na agenda intensa de shows, viagens, participações em programas nacionais de televisão, puxada pelo hit de “Prefixo de Verão”, sucesso absoluto em 1990. “Essa exposição em mídia nacional me deu um respaldo que tenho até hoje, mas não me deu dinheiro, pelo contrário”, ela diz. “Tive um desgaste com a empresa certa vez porque queriam me pagar em abadá. Imagine, uma cantora, mãe solo, vendendo abadá no shopping e na orla.”

Márcia Short sorri ao lembrar das sessões de estúdio, da criação de levadas e letras de canções em idas e vindas nos ônibus e da convivência com os músicos. Frequentadora assídua dos blocos afro, ela já tinha essa influência antes mesmo de esses estilos musicais ganharem a avenida. Eram esses estímulos criativos que a mantinham ativa na mais duradoura e bem-sucedida formação da Banda Mel, também uma das mais influentes da axé music até hoje.

“Mas tem uma hora que apenas a satisfação artística não segura, né? As contas chegam. O próprio status de ser estrela da arte, da música, quem bancava era eu. Eu comprava minha roupa, meu figurino, pagava meu cabelo, minha maquiagem. Depois que eu saí, teve de tudo, mas enquanto eu estava lá, estive nem no Carnaval tinha um transporte.”

Em 1994, após cinco anos à frente da Banda Mel, ela tentou negociar um contrato mais vantajoso financeiramente com a empresa, com quem acabou rompendo, ao lado de Robson Moraes. Sem um acordo de rescisão, a dupla entrou na Justiça contra os empresários, que mantiveram a banda em atividade com outras formações ao longo dos anos —sem tanto sucesso.

Somente em 2023, após décadas de disputa nos tribunais, a dupla conseguiu legalmente o direito de explorar comercialmente a marca da Banda Mel. Márcia conta que, há cerca de dez anos, o valor devido a eles pelos direitos trabalhistas não pagos já estava na casa dos R$ 6 milhões. “Como eles não tinham esse dinheiro, e nada que valesse isso nos nomes deles, propuseram fazer leilão da marca. Então, em consenso, eu e Robson decidimos trabalhar essa marca.”

A dupla gravou um audiovisual com registro de um show em setembro do ano passado, na Concha Acústica do Teatro Castro Alves, em Salvador, numa “catarse enorme de mexer com qualquer ser humano”, ela diz. Ela afirma que “não sabia que tinha ficado na memória e no coração” do público. “A gente fica tanto num lugar de defesa que acaba passando batido por algumas emoções que não se permite sentir, acha que não merece.”

Há duas memórias fundamentais de Carnaval para Márcia Short. A primeira, no auge da Banda Mel, quando passou em cima do trio pelo local onde antes vendia acarajé. E, depois, em carreira solo, cantando de madrugada, quando “as pessoas estão exaustas e só tem quatro bêbados, cinco putas e dois cachorros” na rua.

Hoje, ela tenta levantar fundos para fazer um documentário sobre cantoras negras baianas que foram esquecidas pela história. Também pede um espaço mais privilegiado no Carnaval para os blocos afro, e quer jogar de novo os holofotes no ritmo criado no Olodum por Neguinho do Samba, como canta na música solo “Meu Samba Reggae”.

“Foi a baqueta de Neguinho do Samba que regeu tudo isso, né? Ele era meu amigo pessoal, fomos juntos para a trincheira muitas vezes, pedir que fosse providenciado alguns movimentos para que a gente tivesse algum direito. Foram muitos anos sem ter direito a nada. Sou testemunha de que neguinho morreu triste, decepcionado e chateado com como as coisas aconteceram.”

Márcia Shot diz que conta sua história para que novas gerações não passem pelo que ela passou. “Foi uma caminhada cheia de nuances e percalços, mas não sou vítima de nada. Eu reagi, me mantive. Não foi fácil, mas eu cheguei.”



Leia Mais: Folha

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