Mirtes Renata
Recife, dia 2 de junho de 2020: há exatos cincos anos, uma data que carrego no corpo e na alma. Em plena pandemia de Covid-19, eu, Mirtes Renata, e minha mãe, Marta, duas mulheres negras, éramos obrigadas a sair de casa todos os dias para trabalhar como empregadas domésticas.
Sem alternativas, eu levava comigo meu filho, Miguel Otávio, de apenas 5 anos. Ele não tinha onde ficar. Assim como tantas outras mães negras, eu me via forçada a mantê-lo por perto, nos fundos das casas onde trabalhava. Sempre invisível, sempre “incomodando”, como se ele não fosse digno de cuidado.
Naquele dia, como em tantos outros, tive que fazer tarefas que iam além do combinado. Uma delas era passear com o cachorro da patroa. Passear com o cachorro. Mais uma obrigação imposta sem questionamento, como se minha função ali fosse fazer tudo. Enquanto levava o animal, deixei Miguel sob os cuidados de Sarí Corte Real porque ela mesma pediu para cuidar dele. E foi aí que tudo desabou.
Meu filho, sentindo minha falta, chorou. Era uma criança, só queria sua mãe. Mas incomodou a tranquilidade de Sarí, que estava fazendo as unhas —com uma manicure, em plena pandemia. E então, num gesto de total negligência, a patroa permitiu que ele entrasse sozinho no elevador. Um menino de 5 anos, sozinho, num prédio de mais de 30 andares.
A dor que sinto ao imaginar meu filho, tão perto e ao mesmo tempo tão longe de mim, é algo que nunca vai embora. Ele desceu no 9º andar, me viu lá embaixo e tentou me alcançar. Mas seu instinto infantil, sua inocência e a falta de proteção fizeram com que ele ultrapassasse o limite da área do ar-condicionado e caísse de uma altura de 35 metros. A queda tirou a sua vida.
A morte do meu filho é também a dor de tantas mães negras neste país. Mulheres que enterram seus filhos vítimas da violência policial, do descaso médico, de desastres ambientais e, como no meu caso, da negligência e do racismo.
E, como se não bastasse, descobri depois que eu e minha mãe éramos pagas pela Prefeitura de Tamandaré (PE), como se nosso trabalho na casa da então primeira-dama fosse parte da administração pública. Misturaram o público com o privado e nos negaram até o mínimo de dignidade no registro do nosso trabalho.
Tive que recorrer à Justiça. Entrei com ações nas esferas criminal, trabalhista e cível. Mas, até hoje, nada foi concluído. A mulher que abandonou meu filho, Sarí Corte Real, segue livre. Vive como se nada tivesse acontecido. Foi presa no dia do fato por homicídio culposo, mas logo pagou fiança e saiu. Nenhuma responsabilização efetiva. Nenhuma justiça.
Eu me pergunto: e se os papéis fossem invertidos? Se eu, mulher negra, tivesse deixado o filho da patroa morrer? Estaria solta hoje? Não. Estaria presa desde o primeiro instante. A verdade é que a morte do meu filho escancarou, para quem ainda fingia não ver, o racismo estrutural, a desigualdade e o valor que esta sociedade dá —ou melhor, nega— à vida das crianças negras e à dignidade das trabalhadoras domésticas.
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