Em “Noites Insones”, obra-prima de Elizabeth Hardwick, uma idosa que vive em uma casa de repouso sórdida decide dar início a um “trabalho de memória transformada e até distorcida”. São reminiscências repletas de “nós” e tantas outras pessoas, na passagem do plural ao singular, e vice-versa. “Afinal, ‘eu’ sou uma mulher”, afirma a narradora, também chamada Elizabeth.
O arco temporal das histórias é o de toda uma vida, pontuado por anos-chave que aparecem em inícios de parágrafos, que evocam uma troca epistolar rememorada —”1940. Querida mamãe”— ou em cabeçalhos de cartas transcritas na íntegra.
A primeira delas, que tem como destinatária uma pessoa identificada com a letra M. —mesma inicial da amiga da autora a quem o livro é dedicado ao lado da filha—, é de 1954. A última é de 1973, ano a partir do qual “não sou mais um nós”, informa a narradora.
A referência à dissolução dessa primeira pessoa do plural assinala o fim de um casamento de mais de duas décadas. Menção oblíqua e identificada apenas pelo uso desse pronome pessoal do caso reto.
E se a própria autora contorna qualquer referência ao nome do ex-marido, esta resenha tem como obrigação trazê-lo como dado autobiográfico? Poupemos a busca: o poeta Robert Lowell, que depois da separação, publicou um livro baseado em cartas íntimas dela para ele.
Recortada do contexto mais estrito e tomada de empréstimo aqui para uma livre interpretação, a afirmação “não sou mais um nós” pode aludir a certa aversão da narradora a retratos que busquem representar coletivos.
“As duas mulheres não são iguais, e nenhuma delas representa sua época ou seu gênero. Eu não difamaria a moça por seu narcisismo, nem daria muita importância aos terríveis trabalhos de parto de minha mãe, os quais há muito tempo ficaram para trás.”
Em relatos afiadíssimos, repletos de uma “beleza formada por negativos”, o assunto são sempre os outros, moradoras de rua, amantes, aqueles que tiveram o azar de terem sido tocados pela musa (a inspiração) sem ter dinheiro. Da estrela do jazz Billie Holiday, com quem conviveu até a morte dela aos 44 anos, a cada uma das faxineiras que trabalhou nas casas onde morou.
Se por um lado não é verdade que o endereço não importa para que alguém seja quem é, a narradora que nasceu em Kentucky, mas viveu em Nova York, Boston, Maine, Amsterdã —e viajou pelo mundo— não nos deixa discordar de que nem todos estão ligados à própria região. Para ela, “o estigma do lugar se adere a nós não como um direito de nascença, mas como uma espécie de artifício, um cosmético”.
A experiência traumática do aborto, por exemplo, surge na narrativa mais por omissão do que como tema que a coloque no centro de um testemunho de si.
“Omiti meu aborto, omiti ter fugido dos médicos pálidos e assustados e de suas esposas amarelas e furiosas nos consultórios sujos e separados por cortinas na avenida West End.”
Quando imagina como seria ser a mulher de um destes trabalhadores que resolvem tudo em uma casa, menos nas deles, reconhece o seu próprio pai, sem mais delongas sobre ser trânsfuga de classe.
O destaque para a palavra “romance”, que se lê na capa desta nova edição, é o gênero possível para falar de “Noites Insones”, na medida que abarca tantos outros como o epistolar já citado, além de achados poéticos em meio a uma prosa marcada pela fragmentação. Mas entre o romanesco e o autobiográfico, é a articulação ensaística do pensamento que mais brilha nesse noturno despertar.
O que importa em “Noites Insones” não é o que vai acontecer, mas o efeito dessas formas. Um tanto testemunho ocular, para um muito maior de trabalho com a linguagem, alimentado por muita leitura.
Nestas páginas, topamos com citações de Nietzsche, Shakespeare, Apollinaire, Borges, Flaubert, Dostoiévski, mas, sobretudo, com a criação de Elizabeth Hardwick. Seu “eu”, ela mesma —em nós.