Inácio Araujo
O início de “O Reformatório Nickel” sugere uma crítica talvez sarcástica à pregação do pastor Martin Luther King. Em seu famoso discurso amplamente difundido na TV —e nas lojas onde o aparelho era vendido nos anos 1960— ele dizia que tinha um sonho, e que esse sonho não era distante, mas estava perto de se realizar.
É só ao longo do filme que o espectador começará a questionar as palavras célebres de Luther King. Será que seu pacifismo à la Gandhi faz sentido num ambiente como o sul dos Estados Unidos?
Pois é no sul, no começo dos anos 1960, época de lutas sociais intensas, que se desenrola o drama dos jovens negros de “O Reformatório Nickel”. O questionamento da eficácia do pacifismo faz todo sentido, especialmente quando acompanhamos a trajetória de Elwood, interpretado por Ethan Herisse, jovem que vive com a avó e tem possibilidade de, por seus méritos, cursar uma boa escola.
Mas num lugar onde os negros têm de abrir passagem para os brancos na calçada, não demora para que o jovem caia nas garras do sistema branco de justiça e vai parar no reformatório Nickel.
Ali veremos que o sonho de Luther King era, de fato, um sonho. Nickel é um inferno desenhado para fazer em pedaços jovens negros. Esse é o destino do pacífico Elwood, a quem a bondosa avó tentou ensinar as regras do bom comportamento, na esperança de que ele fosse recompensado pela sua gentileza.
Sua teoria, porém, cai por terra quando ela visita o neto na instituição e é barrada. A humildade e o bom comportamento parecem ser meros atributos que abrem caminho para o sadismo dos brancos do sul, que alimentam com violência o seu próprio sentimento de superioridade.
A amizade que começa entre Elwood e Turner, vivido por Brandon Wilson, é talvez o acontecimento mais importante da vida de Elwood. Turner é o veterano, aquele que conhece muito bem o inferno penal. O que virá daí por diante é o que veremos ao longo do filme.
O filme de RaMell Ross inspira no espectador sensações consequentes do sentimento de impotência. A injustiça, a arbitrariedade e a brutalidade contra os negros, com as quais o Brasil está tão familiarizado. Ao assistir o filme, nos sentimos tristes, solidários, com vontade de cortar os pulsos ao perceber como a humanidade pode ser iníqua e cruel.
Talvez RaMell Ross tenha notado o quanto esse tipo de reação pode ser comovente, mas infértil. Aquece o coração dos homens (brancos?) de boa vontade, mas não leva os negros a nada senão de volta ao sonho.
Talvez seja o que explica a linguagem que o filme adota. Bastante indireta, recorre à câmera subjetiva com frequência, permitindo que certos objetos apareçam inesperadamente, como fragmento de um mundo que não pode ser visto por inteiro.
Menos que expressionista, esse olhar parece querer impedir que o espectador veja os acontecimentos por completo, e às vezes em toda sua infâmia. Talvez seja esse olhar que ponha o espectador em guarda contra as palavras antigas de King. Não para contrariá-lo, mas para se questionar se o pacifismo é mesmo o caminho mais viável num lugar cheio de ódio racial. Ou, ainda, se é suficiente —ou apenas necessário.
O filme é lançado em um momento de truculência nos Estados Unidos, manifestada sem censura pelo novo presidente dos Estados Unidos, Donald Trump. O efeito que essa mise-en-scène sutil, estranha, mas não desinteressante causará a longo prazo é um pouco o mistério que “O Reformatório Nickel” carrega.