Pardos têm sido demonizados no debate racial brasileiro – 24/05/2025 – Gustavo Alonso

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Nesta semana causou alvoroço nas redes digitais brasileiras um post da intelectual Lilia Schwarcz, imortal da Academia Brasileira de Letras e pesquisadora histórica das questões raciais. Lilia apressou-se na interpretação de uma pesquisa com veredito polêmico.

“IBGE mostra como quase toda a população brasileira é miscigenada. Mas o padrão são homens europeus e mulheres africanas e indígenas. Somos mesmo descendentes do estupro!”, escreveu.

A estigmatização da miscigenação e a culpabilização dos pardos têm sido armas frequentes de intelectuais afinados às pautas identitárias radicalizadas.

Pensadores dessa linha parecem odiar o que o Brasil é na prática. Um país cujas relações foram mediadas pela violência, sim, mas também por milhares de outros afetos e histórias complexas. Lilia parece esquecer que a miscigenação foi um processo basicamente popular, e não meramente formatada pela pulsão de elites sádicas, de cima para baixo.

Antes de se tornar o conceito freyriano de “democracia racial”, hoje largamente demonizado, a miscigenação foi uma realidade concreta da formação brasileira, como já apontou o hoje proscrito intelectual Antonio Risério.

A mistura racial se fez sobretudo nas relações entre alforriados, caboclos, migrantes, cafuzos, mulatos, indígenas, negros livres e brancos pobres ao longo de séculos. Em nome da exaltação da negritude idealizada, Lilia e os identitários vêm sistematicamente há anos apagando a identidade parda brasileira.

O discurso de Lilia não é novo. Se hoje a imortal nos nomeia como “descendentes do estupro”, essa retórica radicalizada remonta à ideia de que a miscigenação é uma espécie de “genocídio negro”, conceito formulado por Abdias Nascimento.

Em 1978 o intelectual publicou o livro “O Genocídio do Negro Brasileiro”. Nele, defendeu a tese de que a mistura racial era uma forma de extermínio da negritude. “O processo de miscigenação, fundamentado na exploração sexual da mulher negra, foi erguido como um fenômeno de puro e simples genocídio”, escreveu.

Outra intelectual, também idolatrada pelos identitários de hoje, é Lélia Gonzalez. Partindo do pressuposto de Abdias, Lélia avançou demarcando dinâmicas de extermínio e desumanização que fundamentam a ideia de “genocídio negro”. Para ela, a naturalização das condições de vida precárias e a violência sofrida pela população afrodescendente eram formas de exterminar a negritude.

O conceito de “genocídio negro” hoje virou dogma. Quase todos os intelectuais identitários atuais adotam-no. De Djamila Ribeiro a Érico Andrade, de Rodnei William a Lázaro Ramos, de Silvio Almeida a Lilia Schwarcz, todos o incorporam como verdade absoluta e inegável. Mesmo que a população negra, assim como a população brasileira como um todo, tenha aumentado dez vezes ao longo do século 20.

O mais curioso é que os pais fundadores do conceito de “genocídio negro”, Abdias e Lélia, tenham eles mesmos contribuído para o que denunciavam. Ambos intelectuais seriam chamados hoje de “palmiteiros” por terem tido relacionamentos afetivo-amorosos interraciais. O termo “palmiteiro” é usado como chacota dentro do próprio movimento negro para denominar aquele integrante que se relaciona com pessoas brancas.

Abdias foi casado por mais de 30 anos com a intelectual Elisa Larkin, americana branca e loira, mãe de seu filho miscigenado. Lélia foi casada com o espanhol Luiz Carlos Gonzalez, homem branco, de quem herdou o sobrenome.

Se uso aqui o termo “palmitagem” não é para condenar Lélia e Abdias. Quem usa esse termo de forma pejorativa são os identitários radicalizados. De minha parte acho que essa é a grande qualidade destes intelectuais, por mais contraditório que seja com suas próprias teorias.

Ao defenderem a tese de que a mistura interracial era uma forma de “genocídio negro”, Abdias e Lélia mascaravam seus desejos íntimos pró-miscigenação. O curioso é que conseguiram convencer o próprio movimento negro de que não viviam um paradoxo vital.

Uma pena que, para expurgar seus desejos inconfessáveis, Abdias e Lélia tenham sido racistas contra os pardos, relegando-os a mero fruto do estupro, escória da nação. E a imortal Lilia Schwarcz reproduziu estes pressupostos acriticamente em seu polêmico post.

Ainda bem que o Brasil é maior que tudo isso.


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