Percival Everett revitaliza livro de Mark Twain em ‘James’ – 28/05/2025 – Ilustrada

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Gabriel Trigueiro

Percival Everett é um escritor com trajetória incomum. Desde criança dava sinais de que não era como os outros meninos.

“Eu costumava jogar beisebol na infância, mas achava muito chato. Uma vez, durante o jogo, me chamaram a atenção porque fui pego lendo Kurt Vonnegut, numa edição de bolso escondida na minha luva de beisebol. Foi o autor que deu liberdade à minha imaginação”, recorda o autor americano à Folha.

Na conversa por vídeo, Everett, que estava em sua casa na Califórnia, dava uma pausa para refletir antes de cada resposta, de um jeito tranquilo e atencioso. Ele usava um boné azul liso, uma camisa escura e, junto à parede, havia duas estantes abarrotadas de livros.

Poucos dias depois, o escritor e professor da Universidade do Sul da Califórnia ganharia seu primeiro prêmio Pulitzer aos 68 anos com seu novo romance, “James”, também vencedor do National Book Award. O livro acaba de sair no Brasil pela Todavia.

Se em “Erasure”, seu romance adaptado para o cinema como o vencedor do Oscar “Ficção Americana”, Everett satirizava as imposições e regras não escritas do mercado editorial, em “James” ele imagina “As Aventuras de Huckleberry Finn” contadas a partir da perspectiva de Jim, ou James, o escravo fugitivo e parceiro do protagonista do livro de Mark Twain.

Segundo Everett, o romance de Twain ocupa papel central na cultura do seu país: foi a primeira vez em que a escravidão não foi o tema de um romance de protesto. A tentativa do autor era compreender quais eram os efeitos dela não apenas no escravizado, mas também em quem escravizava.

Além de escritor, Everett é músico. “O ritmo da minha escrita e do meu humor vêm do jazz. Embora, claro, eu também seja fã de outros estilos, blues e música clássica, por exemplo. Mas mesmo na música clássica a parte que mais me interessa é a improvisada. O que para mim é encantador é o fato de que, na música, há apenas 12 notas na escala, mas, ainda assim, existem milhões de canções.”

Sua escrita sempre foi permeada por influências inusitadas —Everett cresceu encantado com a técnica, o tempo e a sofisticação formal dos textos dos comediantes negros de sua geração. “Fui influenciado por Richard Pryor e Dick Gregory. E havia outros comediantes cujo trabalho linguístico também me interessavam. George Carlin, por exemplo.”

Por outro lado, também curtia temas mais áridos, como filosofia da linguagem. “Eu estudei Wittgenstein, e parte do que sei sobre a relação entre linguagem e literatura vem daí. Eu me interesso por questões filosóficas, mas sempre escolho desenvolvê-las pela literatura.”

Sua capacidade de refletir a respeito de seu processo criativo é incomum e sofisticada. “Não acho que alguém seja capaz de ler o meu trabalho e afirmar que eu estou lidando com esse ou aquele problema filosófico. Mas acho que existem circunstâncias que trazem à tona questões morais e da construção de sentido. Você sabe, certas questões éticas, ou se nós, como seres humanos, sabemos o que é de fato construir um sistema ético, até porque ele não existe no vácuo.”

A ideia central de “James”, se é que ela pode ser resumida, é a de que a negritude —”blackness”, em inglês— é uma performance, portanto uma construção artificial, que se faz prioritariamente através da linguagem.

Jim, o personagem de “Huckleberry Finn”, é unidimensional, infantilizado e simplório. Já, no livro de Everett, descobrimos que Jim é apenas uma performance de James, um intelectual erudito que discute em seus sonhos com Voltaire e John Locke.

O que a obra de Everett indica é que a melhor forma de combater o racismo é com ironia e uma inteligência sutil. “Podemos zombar do problema, reconhecê-lo e nos tornar mais próximos por causa disso e daquilo. E isso requer uma atitude muito saudável com relação à diferença”, afirma.

O reconhecimento da injustiça e o desejo de lidar com ela não têm a ver com se sentir culpado, como pontua o autor. “A culpa que os liberais sentem é apenas uma busca por expiação. É uma maneira de assumirem o protagonismo de um problema que, na verdade, é da sociedade e da cultura.”

Por outro lado, com relação à visão racial dos conservadores, argumenta que “eles negam a história”. “Interpretam qualquer tipo de reconhecimento dos impactos do racismo na sociedade como uma espécie de admissão de culpa. Na nossa cultura há pouco pensamento coletivo. É tudo voltado para uma lógica ultraindividualista.”

Diante de uma pergunta sobre as principais semelhanças e diferenças entre seu humor e o de Twain, ele comenta que ambos são irônicos e consideram o ser humano “um animal tolo e infeliz”.

“Por outro lado, Twain estava mais preocupado com o aspecto comercial de sua arte do que eu. Não estou interessado em agradar ninguém, e acho que Twain estava. Não me entenda mal. Fico feliz quando acontece, mas não é o que me motiva.”

Uma reportagem do jornal The New York Times sobre os bastidores da premiação de “James” no Pulitzer afirma que o livro não foi a primeira escolha entre os cinco membros do júri, mas o quarto da lista.

Ele teria sido nomeado vencedor porque os três finalistas não possuíam a maioria dos votos e, em casos como esse, há duas opções —nomear a obra seguinte da lista ou não nomear ninguém. Há quem cite essa tecnicidade da eleição como demérito do livro.

Também houve críticas sobre uma suposta injustiça com as três autoras finalistas, preteridas por um homem. No entanto, o fato de que o homem em questão seja um autor negro, com uma trajetória de livros experimentais publicados quase sempre por editoras independentes, não costuma ser citado como um aspecto relevante.

É algo que soa, afinal, como o revés de um romance satírico escrito pelo próprio Everett —um comentário melancólico, irônico, a respeito do debate sobre diversidade e o estado da cultura nos dias que correm.



Leia Mais: Folha

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