Sob risco de ser preso, Bolsonaro mobiliza a base com estratégia de vitimização

Date:

Compartilhe:

José Benedito da Silva

Conhecido pela capacidade de mobilização nas ruas e nas redes sociais, o bolsonarismo já andava agitado desde o dia 9 de julho, quando o presidente americano Donald Trump impôs tarifa de 50% à importação de produtos brasileiros a pretexto de fazer o país, entre outras coisas, “deixar Bolsonaro em paz”. Inicialmente na defensiva, em razão da repercussão negativa da medida, os apoiadores mais entusiasmados do ex-presidente entraram em alvoroço na sexta-feira 18, quando a Polícia Federal bateu à porta dele para fazer busca e apreensão e, principalmente, levá-lo para colocar uma tornozeleira eletrônica imposta pelo ministro Alexandre de Moraes em razão da possibilidade de fuga em meio à reta final do julgamento da trama golpista, em que é o principal réu. A medida desencadeou uma espiral de tensão, que chegou ao ápice na segunda 21, após Bolsonaro protagonizar um estardalhaço na Câmara, onde se disse “humilhado” e vítima de “covardia” e anunciou que “vamos enfrentar a tudo e a todos”. O episódio colocou o ex-capitão ainda mais sob pressão, com o risco de ter a prisão preventiva decretada (medida descartada e convertida em advertência na quinta 24) — e gerou uma escalada na mobilização do núcleo duro de seus apoiadores, no Parlamento e na internet, baseada na vitimização do seu líder e na radicalização do discurso.

NO ATAQUE - Eduardo: críticas a quem tenta negociar com os americanos (Lev Radin/Pacific Press/ZUMA Press/Imageplus)

Mesmo impedido por Moraes de usar redes sociais e se ausentar de casa das 19h às 6h e aos fins de semana, Bolsonaro é quem dá o tom da pregação. Na Câmara, exibiu a tornozeleira em tom de indignação, disse que era um homem inocente e criticou o Supremo Tribunal Federal. “O que vale para mim é a lei de Deus”, disse em meio a um tumulto, que deixou uma mesa de vidro quebrada e o deputado Nikolas Ferreira (PL-MG) ferido. O rebuliço provocou nova decisão de Moraes, que deu 24 horas para que ele explicasse — “sob pena de decretação imediata da prisão” — o que havia ocorrido, principalmente o fato de ter dado entrevista, replicada largamente por apoiadores nas redes. Na resposta, seus advogados disseram que ele nem cogitava que não poderia dar entrevistas, pediram explicações sobre o que era afinal permitido e prometeram que “Bolsonaro não fará qualquer manifestação até que haja o esclarecimento”. Nos dias seguintes, o ex-presidente voltou a se reunir com aliados, na sede do PL em Brasília, mas passou calado diante dos repórteres, dizendo que estava proibido de falar com a imprensa.

Um dos seus interlocutores nas reu­niões era justamente o principal porta-voz e organizador da ofensiva bolsonarista em curso. O líder do PL na Câmara, Sóstenes Cavalcante (RJ), aliado do pastor Silas Malafaia, foi o responsável pela barafunda no Congresso ao convocar deputados e senadores para encerrar na marra o recesso legislativo. Com dezenas de parlamentares, tentou reabrir comissões que seu partido preside e discutir moções de apoio a Bolsonaro e de repúdio às ações contra ele. A tentativa foi abortada pelo presidente da Câmara, Hugo Motta (Republicanos-PB), que, de férias, baixou um ato proibindo o funcionamento dos colegiados. A confusão fez Bolsonaro desistir de ir às reuniões das comissões, que estavam em sua agenda. Dessa agitação, no entanto, surgiram comissões informais, lideradas por deputados do PL, que tocarão três frentes: mobilização interna da Câmara; determinação e execução de estratégias de comunicação; e mobilização nacional de apoiadores.

TRUMPISMO VERDE E AMARELO - Apoiadora de Bolsonaro em Brasília: atos tiveram baixa adesão
TRUMPISMO VERDE E AMARELO - Apoiadora de Bolsonaro em Brasília: atos tiveram baixa adesão (Andre Borges/EFE)
Continua após a publicidade

A primeira trilha a ser explorada é a de tentar mostrar que Bolsonaro é vítima de injustiça. Foi o mesmo argumento que Donald Trump usou em seus comunicados, quando chamou o ex-presidente de “homem bom e honesto” e vítima de “terrível tratamento de um sistema injusto”. “Tudo isso foi positivo para poder escancarar a perseguição com ele. Ele não tem nenhuma condenação, mas é tratado como um criminoso”, diz Nikolas Ferreira. “Alexandre de Moraes está colocando Bolsonaro em um lugar em que todo político deseja: o de vítima”, ecoa Silas Malafaia. “Bolsonaro é um homem inocente, um homem honesto e apaixonado pelo Brasil. O que estão fazendo com ele é injustiça! É absurdo!”, postou o senador Flávio Bolsonaro (PL-RJ) quando a tensão sobre o seu pai estava no auge.

PRIORIDADES - Damares Alves: senadora defende impeachment de Moraes e limites à atuação do STF
PRIORIDADES - Damares Alves: senadora defende impeachment de Moraes e limites à atuação do STF (Carlos Moura/Agência Senado)

Para que a estratégia de vitimização funcione, é preciso que haja algozes — os alvos óbvios são Moraes e o STF. Uma das principais medidas será elevar a pressão política pelo impeachment do ministro. O esforço para tirar Moraes do cargo não é pequeno: no Senado tramitam nada menos que 29 pedidos para cassar o magistrado, o último deles apresentado na quarta 23 por Flávio Bolsonaro. “Vamos trabalhar no convencimento dos nossos colegas senadores, especialmente entre os de centro-direita, sobre a necessidade de colocarmos frente ao ativismo judicial”, diz a senadora Damares Alves (Republicanos-DF). Apesar das quase três dezenas de tentativas, a chance de uma medida extrema como essa prosperar é quase nula. Esse tipo de procedimento nunca saiu das primeiras etapas na história da democracia brasileira. O processo é um dos mais complexos da legislação brasileira e demanda um comprometimento político elevado, com o apoio de dois terços dos senadores (54 de 81).

Continua após a publicidade

O plano de guerra contra Moraes, no entanto, não envolve “apenas” a ofensiva por seu impeachment. Uma das ideias é aprovar projetos de lei que limitem a atuação do STF, como a proposta que impede que os magistrados tomem decisões individuais, a que prevê a possibilidade de o Legislativo suspender decisões do Supremo e a que aumenta o rol de crimes de responsabilidade pelos quais os magistrados podem ser processados. Outra possibilidade que será explorada pelo bolsonarismo é a PEC que retira ex-­presidentes da República da lista de cargos que têm foro privilegiado — a iniciativa tiraria Bolsonaro do jugo do Supremo e faria os casos recomeçarem na primeira instância, onde teria direito a pelo menos dois degraus de recursos até a condenação definitiva. Outra obsessão é o pacote da anistia aos envolvidos no 8 de Janeiro, que poderia até beneficiar Bolsonaro.

NA CÂMARA - Faixa pró-presidente dos Estados Unidos: peça foi logo retirada
NA CÂMARA - Faixa pró-presidente dos Estados Unidos: peça foi logo retirada (Edilson Rodrigues/Agência Senado)

Se a ala mais radical do PL lidera o barulho por aqui, nos Estados Unidos é Eduardo Bolsonaro o porta-voz da artilharia contra a Suprema Corte brasileira. Desde o início da crise, o deputado pelo PL-SP tem insistido na tecla de que não há saída para o impasse que não seja a punição a Moraes e a anulação dos processos contra o seu pai. Apesar de dizer que não articulou o tarifaço de Trump (até pela repercussão negativa da ação), ele insiste que é o único com acesso privilegiado ao establishment trumpista e à Casa Branca e reforça que só atuaria pela revogação da tarifa de 50% se o cerco a seu pai e seus apoiadores nos tribunais e nas redes sociais fosse suspenso. A conduta, desarrazoada, rendeu a ele a abertura de um inquérito por Moraes, para investigar crimes como coação no curso do processo e obstrução de investigação de organização criminosa. Foi nessa apuração que seu pai foi punido com medidas cautelares. Entre outras coisas, Bolsonaro é suspeito de financiar a atividade de Eduardo no exterior, uma vez que admitiu em entrevista ter repassado ao filho 2 milhões de reais, recebidos de apoiadores. Moraes bloqueou as contas bancárias, o Pix e bens do deputado. No sábado 19, o ministro disse, em despacho no inquérito, que Eduardo vem radicalizando a pregação após a busca e apreensão e a imposição de sanções a seu pai. “O investigado Eduardo Nantes Bolsonaro intensificou as condutas ilícitas objeto desta investigação, por meio de diversas postagens e ataques ao Supremo Tribunal Federal nas redes sociais”, escreveu o ministro. “Eu estou disposto a ir às últimas consequências. Pode prender o meu pai, eu não vou mudar a minha conduta”, rebateu Eduardo.

Continua após a publicidade

Enquanto os radicais se agitam, a equipe jurídica de Bolsonaro faz o que pode para evitar o pior. Um bom exemplo foi a resposta rápida, antes do término do prazo de 24 horas, ao questionamento de Moraes sobre o ato de Bolsonaro na Câmara. Os advogados decidiram explorar as lacunas de uma confusa decisão do ministro para evitar uma ordem de prisão que pareceu iminente. Ao mesmo tempo, a equipe de defesa tem que se preocupar com a reta final do processo de tentativa de golpe, no qual Bolsonaro pode ser condenado à prisão. A expectativa é que o caso seja julgado até setembro.

PREOCUPAÇÃO - Ciro Nogueira, cacique do PP: Centrão opta pela discrição
PREOCUPAÇÃO - Ciro Nogueira, cacique do PP: Centrão opta pela discrição (Saulo Cruz/Agência Senado)

Um pequeno alento para a defesa veio do ministro Luiz Fux, que divergiu de Moraes ao analisar a imposição das medidas cautelares. Ele foi o único dos cinco ministros da 1ª Turma a votar contra. O ministro argumentou que nem a Polícia Federal nem a Procuradoria-Geral da República trouxeram provas concretas de que Bolsonaro planejava deixar o país e que, por isso, a tornozeleira eletrônica foi uma medida “desproporcional”. Fux disse ainda que “a amplitude das medidas impostas restringe desproporcionalmente direitos fundamentais, como a liberdade de ir e vir e a liberdade de expressão e comunicação”. Como a Turma já havia formado maioria para endossar a deliberação de Moraes, o voto não tem efeito prático, mas demarca um posicionamento em sentido contrário ao que a Corte vem adotando, mostrando o que podem ser as primeiras rachaduras no colegiado que julgará Bolsonaro.

Continua após a publicidade

Quem observa tudo com muita atenção e alguma apreensão é o Centrão. O apelo à radicalização não está em sintonia com o espírito pragmático de partidos como União Brasil, PP, Republicanos e até mesmo PSD e MDB, que poderiam ajudar a construir uma candidatura de oposição a Lula em 2026. O senador Ciro Nogueira, presidente do PP, por exemplo, lamentou a decisão de impor tornozeleira ao ex-presidente no dia da decisão, mas depois calou-se. Outros caciques, como Marcos Pereira (Republicanos) e Gilberto Kassab (PSD), nada falaram. Esse grupo gostaria que o ex-­presidente apontasse o governador de São Paulo, Tarcísio de Freitas (Republicanos), como sucessor, mas isso não deve ocorrer tão logo. Bolsonaro prefere esticar a corda e deixar aberta a porta para apoiar alguém com o seu sobrenome, como Eduardo. O filho Zero Três cresceu entre os radicais, mas tornou-se um aliado pesado para ser carregado na avaliação de muitos líderes do Centrão. Nome com maior potencial entre a oposição, Tarcísio também se complicou em um primeiro momento, quando pareceu que optaria pelo alinhamento cego ao ex-pre­sidente, mas deu alguns passos para trás e decidiu centrar fogo na resolução dos problemas dos setores afetados pelo tarifaço em São Paulo. “Tarcísio tem se mantido com um pé em cada canoa. Em uma está o bolsonarismo, o extremismo, na outra está a moderação, o centro democrático, com as instituições e o STF”, diz o cientista político Rodrigo Prando, da Universidade Mackenzie.

DIVERGENTE - Luiz Fux: voto de ministro anima a defesa de Bolsonaro na Corte
DIVERGENTE - Luiz Fux: voto de ministro anima a defesa de Bolsonaro na Corte (Felipe Sampaio/STF)

Com a indefinição à direita, cresce a possibilidade de divisão nesse campo — dois governadores, Ronaldo Caiado (União Brasil), de Goiás, e Romeu Zema (Novo), de Minas Gerais, já se colocam como candidatos a presidente, embora ambos ainda possam compor uma eventual frente de oposição a Lula. “O mais importante é que Bolsonaro, à medida que a sua provável condenação se aproxima, perde o controle que sempre imaginou ter dos rumos do processo sucessório do ano que vem”, diz o cientista político Eduardo Grin, da FGV-SP.

Continua após a publicidade

A aposta no confronto neste momento delicado tem o fator positivo, para Bolsonaro, de mobilizar a sua base e aumentar a tensão política, um ambiente no qual o ex-­presidente gosta de navegar. Tanto que vem estimulando, por meio de parlamentares e de Malafaia, a organização de protestos no dia 3 de agosto, sob o lema “Reaja, Brasil, para o Brasil não quebrar”. Como é um domingo, a limitação imposta por Moraes vai impedir que ele esteja presente, mas o volume da adesão vai mostrar qual o seu tamanho político na atual circunstância. Há poucos dias, manifestações pelo país, como em Brasília, tiveram baixa presença de apoiadores. Diferentemente de outros momentos, em que o bolsonarismo quis concentrar os atos em São Paulo, Rio ou Brasília, agora o chamado é abrangente. Desta vez, os atos ocorrerão em todas as cidades que quiserem aderir”, diz o deputado Rodolfo Nogueira (PL-MS), um dos articuladores. Cada vez mais acuado, o ex-presidente decidiu lançar-se ao ataque, em uma cavalgada desesperada em busca de uma improvável salvação.

Publicado em VEJA de 25 de julho de 2025, edição nº 2954



Leia Mais: Veja

spot_img

Related articles

1ª cantora lírica brasileira no Opera de Paris embarca para a França; vídeo

Lorena Pires, a 1ª cantora lírica brasileira a integrar a Academia Opera de Paris, está embarcando nesta...

Médica de 100 anos trabalha até hoje em hospital e não quer se aposentar

Que energia, saúde e vitalidade! Esta médica, que tem 100 anos, continua trabalhando três vezes por semana,...

Veja como é o remédio contra insônia, aprovado pela Anvisa; um dos melhores do mundo

Um novo remédio para tratar a insônia deve trazer esperança para milhões de brasileiros que lutam contra...

Oportunidade para artistas na COP 30: começa seleção online da Disruptivos Digitais

A hora é essa! Artistas brasileiros, que não são famosos, poderão participar da COP 30. A seleção...

Site seguro, sem anúncios.  contato@acmanchete.com

×