Três quartos com vista para o passado – 01/06/2025 – Giovana Madalosso

Date:

Compartilhe:

Tenho procurado apartamento para morar. Que aventura deliciosa, ainda que às vezes cansativa, entrar com os corretores em prédios desconhecidos, passar por portarias e portas que eu nunca passaria de outra maneira.

É um exercício que gosto de fazer desde sempre. No meu primeiro romance, “Tudo Pode Ser Roubado”, uma garçonete sai com os clientes do restaurante em que trabalha, transa com alguns deles e rouba de suas casas objetos de luxo, que depois revende em um brechó. Quando terminei o livro, fiquei chateada: não poderia mais entrar em casas de desconhecidos, mesmo que só ficcionalmente —e nem transar com alguns desses desconhecidos, mesmo que só ficcionalmente.

Soube de um escritor que fingiu ser corretor de imóveis por alguns meses só para entrar em algumas casas, ver os lugares, ouvir as conversas dos compradores. Não cheguei a tanto, até porque logo estava escrevendo outro livro, interessada em outras dinâmicas.

Agora que volto a procurar apartamento, relembro os velhos tempos, não só quando eu escrevia o romance, como quando cheguei em São Paulo, com vinte e poucos anos e uns poucos reais no bolso. Na ocasião, o único diferencial que o imóvel precisava ter era aluguel e condomínio baixos, o que me levou a locar um apartamento em que o sol só aparecia na televisão.

Vários imóveis depois, procuro outro. Três quartos, ensolarado, para a compra. E me deparo com todo um outro universo de proprietários. Casais que se separam e precisam vender o apê. Casais com filhos que resolvem ir para uma casa. Famílias que não aguentam mais a cidade e querem se mudar para o campo. E pessoas que já não conseguem mais pagar o condomínio do apartamento, ou que estão velhas (e onerosas) demais para ocupá-lo sozinhas.

São essas as pessoas que mais instigam minha curiosidade. Sei que estou entrando na casa de uma delas antes mesmo de passar pela soleira. O hall nunca foi reformado. O capacho está careca. A porta de madeira escura é a mesma de sempre. E este “sempre” pode ser muito tempo, já que adoro apartamentos antigos, dos anos 1950 ou 1960.

Geralmente, durante a visita, a pessoa está em casa. Se aposentou. Ou já não tem mais um emprego. Esqueça a cozinha aberta para a sala. As paredes ali nunca foram quebradas. O quarto de empregada não virou despensa. O banheiro de azulejos azuis não é retrô: é velho mesmo.

Algumas vezes há um piano. E, sobre o tampo, uma toalha de tricô. Ou alguns porta-retratos. Às vezes um filho quarentão que nunca saiu de casa está em um dos ambientes, na frente de um velho computador, gastando com seu tique um carpete.

Finjo que estou ouvindo o corretor falar sobre as vagas de garagem (não me importo com as vagas de garagem) e fico observando o proprietário. É comum que mostre o apartamento com um misto de excitação e receio, torcendo, simultaneamente, para que o interessado compre e não compre aquele último resquício físico de um passado saudoso.

Quanto mais velho o imóvel, mais cheio de histórias para contar, cada quina pedindo para virar uma crônica, um conto, um romance, uma saga de família. Posso não ter encontrado o apartamento ainda mas, de certa forma, nunca saio das visitas de mãos abanando.


LINK PRESENTE: Gostou deste texto? Assinante pode liberar sete acessos gratuitos de qualquer link por dia. Basta clicar no F azul abaixo.



Leia Mais: Folha

spot_img

Related articles