Um vendedor de móveis antigos e o melhor conselho matrimonial da minha vida – 02/05/2025 – Cotidiano

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Martha Nowill

Em agosto de 2024, me mudei para um apartamento sem armários. Fui até as lojas de antiguidades que ficam embaixo do Minhocão e numa delas conheci José Carlos. Comprei dele uma farmácia e um armário pequeno. Seu Zé me contou de onde vinham as peças, e explicou o processo de recuperação. Não me interesso muito pelo tema, mas me interessei pela conversa. Continuamos trocando mensagens quando chegava alguma coisa que poderia me interessar. As fotos vinham acompanhadas de áudios rápidos que pareciam estar sendo reproduzidos de forma acelerada. Zé Carlos fala rápido, trabalha de domingo a domingo, e só topou “gastar quase duas horas de trabalho pra dar entrevista” porque era eu.

Sentamos na calçada em bancos ainda não restaurados, e conversamos acompanhados pelo barulho ensurdecedor dos automóveis que passam pelo viaduto. José Carlos nasceu em Lajedo (PE) onde morou até os 30 anos. Estudou até fazer a admissão. O que é admissão, seu Zé? “Um livro grande assim.” Com 14, começou a trabalhar na roça do pai. Com o salário comprava gado, colocava no pasto, vendia. Aos 16, já tinha seus dois primeiros hectares de terra. Aos 18, juntando os bicos, comprou o primeiro carro, um rural. E assim foi. Trabalhava na agricultura, pecuária, montou uma cerâmica de fazer tijolo, casou, teve quatro filhos. No governo Sarney, pegou um empréstimo, e em três meses os juros estavam em 12%. Quebrou. Vendeu tudo: terra, carro, quatro motos, móveis e até “o fogãozinho vermelho de duas bocas” se foi. “Acaba o dinheiro, acaba o amor né?”. A mulher veio pra São Paulo com os filhos trabalhar, ele continuou tentando se reerguer, mas um ano depois veio também.

Arrumou trabalho de caixa num posto de gasolina na Marechal Deodoro, e como trabalhava de seis às 10, não tinha tempo de gastar o salário. Comprou o ponto de uma loja de móveis antigos na mesma calçada do posto. Do caixa, ficava de olho na loja aberta a poucos metros dali. Nas folgas cuidava dos móveis. “Mas você entendia do assunto?”, “Nada, aprendi no dia a dia, o próprio serviço ensina você”. Separou de Maria Lúcia, se juntou com Valdira, separou de novo. Conheceu Maria Rosa, com quem teve mais dois filhos, Rayane e Rayanderson. Depois de dois, “no máximo três anos, talvez quatro”, separou de novo porque “a vida passa rápido pra ficar brigando”. É difícil entender as datas da sua vida, a começar pelo aniversário. Nasceu em novembro, mas foi registrado em agosto, quase um ano depois. Se é que entendi direito. Mas a linha do tempo segue mais ou menos assim: depois que separou de Rosa conheceu Maria Miria, e já se vão uns 20 anos. “Qual o segredo de ficar junto tanto tempo?” “Ela fala eu escuto, eu falo ela escuta.” E assim, sentada embaixo do minhocão numa manhã de quarta-feira nublada, ouvi o melhor conselho matrimonial de toda minha vida. Depois de 23 anos trabalhando no posto e tocando a loja, comprou outro ponto na São João, esse onde estamos. Ganha muito? “Dinheiro bom pra mim é aquele de entrar na padaria e poder comprar um bom bolo e um cigarro.” Zé gosta de doce.

Tento romantizar sua relação com os móveis, pergunto como se sente em relação às famílias que os vendem, geralmente pessoas enlutadas que precisam passar a mobília pra frente. Mas ele não se envolve. “Meu papel eu faço, que é ver se a peça tem valor e levar embora. É daqui pra frente.” E o que seu Zé mais gosta no trabalho? “É que ele dá dinheiro.” E também gosta de recuperar móveis que estão muito ferrados. “Tenho paciência. Quanto mais velho mais eu gosto.”

Uma vez por ano vai a Lajedo. Pra descansar? Não, trabalhar. Vai de ônibus, 52 horas de viagem. Compra quatro cadeiras, duas pra ida e duas pra volta, pra não ter ninguém enchendo o saco do lado.

Em São Paulo, mora num apartamento alugado. Me explica porque não vale a pena comprar exatamente da mesma forma que meu consultor financeiro faz. De onde vem esse tino pro negócio? “Do meu pai.” Pedro Carlos morreu há três anos, a mãe, Noemi, há 12. Não conseguiu voltar pro enterro, mas isso não incomoda, “O importante é ver enquanto tá vivo”. Agora quer diminuir o passo, já que em 13 anos faz 80. Se tiver três meses de aluguel pago, já dá pra fechar as portas e viajar. “O que eu mais quero é ter tempo.” Tempo merecido, penso. “E seu apartamento seu Zé, deve ter um monte de móvel antigo lindo.”

“Nada, minha mulher não gosta dessas coisas de museu, lá é tudo moderno, de fórmica branca.”



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