USP: corte de licenciaturas mostra vitória do mercado – 22/05/2025 – Ilustríssima

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Dirce Waltrick do Amarante

[RESUMO] Com o fim da licenciatura em linguística, curso exigido para docência no ensino básico, a USP associa-se ao pragmatismo de nosso tempo que despreza saberes que não tragam lucro ou inserção imediata no mercado, avalia professora. O corte, segundo ela, pode nos levar à “barbárie da utilidade”, mais um passo rumo à corrosão da educação.

A USP (Universidade de São Paulo) decidiu acabar com o curso de licenciatura em linguística, da Faculdade de Letras. O bacharelado segue existindo. O que se discute agora é encerrar outras licenciaturas, entre elas as de latim e grego.

Dessa maneira, a USP parece assumir assim a liderança, dentro das instituições públicas, no debate sobre o fim de faculdades cujos saberes não trazem lucro ou não têm inserção imediata no mercado. Em tempos de pragmatismo e pouca disposição para a reflexão, colocar um fim nessas licenciaturas é mais fácil do que pensar na importância delas para a sociedade.

A congregação da FFLCH (Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas) votou por extinguir o curso com a justificativa da ausência de linguística em escolas do país, o que geraria pouca demanda para formar professores na área.

Talvez o ideal fosse o caminho inverso: obrigar os colégios e as universidades a oferecer essas e outras disciplinas consideradas “inúteis”, mas que sempre foram fundamentais para formar bons alunos e cidadãos, como destaca o livro “A Utilidade do Inútil”, de Nuccio Ordine.

O tema central, discutido no livro de Ordine, é “a utilidade daqueles saberes cujo valor essencial está completamente desvinculado de qualquer fim utilitarista” (tradução de Luiz Carlos Bombassaro, editora Zahar).

Seu argumento é que “há saberes que têm um fim em si mesmos e que —exatamente graças à sua natureza gratuita e livre de interesses, distante de qualquer vínculo prático e comercial— podem desempenhar um papel fundamental no cultivo do espírito e no crescimento civil e cultural da humanidade”.

“Nesse sentido”, completa, “considero útil tudo o que nos ajuda a nos tornarmos melhores”.

Segundo o professor italiano, manter os saberes “imunes a qualquer aspiração de lucro” é também uma “forma de resistência aos egoísmos do presente” e pode ser “um antídoto à barbárie da utilidade, que corrompe nossas relações sociais e nossos afetos mais profundos”.

O uso da palavra “barbárie” me remete às reflexões de Theodor Adorno. Em “A Educação contra a Barbárie”, que consta do livro “Educação e Emancipação”, Adorno afirma que a barbárie ocorre quando, “na civilização do mais alto desenvolvimento tecnológico, as pessoas se encontrem atrasadas de um modo peculiarmente disforme em relação a sua própria civilização —e não apenas por não terem em sua arrasadora maioria experimentado a formação nos termos correspondentes ao conceito de civilização, mas também por se encontrarem tomadas por uma agressividade primitiva, um ódio primitivo que contribui para aumentar ainda mais o perigo de que toda esta civilização venha a explodir” (tradução de Wolfgang Leo Maar, editora Paz e Terra).

É, portanto, urgente discutir o objetivo da educação contemporânea, focando nos saberes que transcendem os limites do mercado. Como afirma Adorno, a superação da barbárie é essencial para a “sobrevivência da humanidade”.

As ideias de Ordine dialogam com as de Adorno, pois a conclusão a que chegamos, lendo ambos os pensadores, é a de que as disciplinas “inúteis” para o mercado nos permitem pensar o mundo e redefinir nossa posição nele.

Adorno critica as técnicas (tão valorizadas atualmente) “fetichizadas,” desconectadas da consciência das pessoas. Para o filósofo, o uso da técnica sem consciência levou, por exemplo, à projeção de sistemas ferroviários mais velozes que, durante a Segunda Guerra Mundial, foram usados para conduzir inocentes aos campos de concentração.

A notícia de que a USP, uma das maiores universidades da América do Sul, discute eliminar graduações é paradoxal e parece ter seu equivalente em anedota menciona justamente por Adorno: uma centopeia, ao ser perguntada como movimenta cada uma de suas pernas, fica completamente paralisada, incapaz de dar um único passo adiante.

Nesse sentido, “Dublinenses”, do escritor irlandês James Joyce, revela-se extremamente atual, já que o tema central dos contos que o compõem é a paralisia, em todos os sentidos, inclusive na educação.

Em “As Irmãs,” que abre o livro, lê-se: “A cada noite, enquanto eu olhava fixo para a janela lá em cima, murmurava para mim mesmo a palavra paralisia. Ela sempre soou estranha aos meus ouvidos, como a palavra gnômon em Euclides e a palavra simonia no catecismo. Mas agora, me soava parecida com o nome de alguma criatura nefasta e pecaminosa. Embora me deixasse tomado de medo, eu desejava estar mais próximo a ela e avaliar seu efeito letal” (tradução inédita de Luci Collin, a ser publicada em “Dublinenses”, traduzido pelo Coletivo Dublinenses, pela editora Iluminuras).

A paralisia, seja por medo ou preguiça, impede qualquer transformação —mais do que isso, diria que ela é aliada das universidades na destruição de espaços de reflexão.

A propósito, a intenção da USP de encerrar licenciaturas não teve, parece-me, a repercussão social que merecia, destacando-se, nesse deserto de manifestações, um brevíssimo comentário de Renato Janine Ribeiro sobre a polêmica proposta: “Há assuntos que uma universidade de pesquisa tem obrigação de estudar. Entre eles, os três mencionados [linguística, latim e grego]”.

Recentemente, Renato Janine esteve na Universidade Federal de Santa Catarina discutindo a proposta pedagógica da Academia Brasileira de Ciências, que destaca a técnica e o mercado como valores norteadores.

O pecado da preguiça é algo pelo qual pagaremos caro, se assistirmos passivamente a educação ser destruída.

Deixemos a palavra a linguistas e a tradutores de grego e latim: eles construíram uma carreira no mundo atual e certamente saberão defender sua atuação de uma perspectiva econômica, se o que está em discussão é o papel de cada um no mercado de trabalho.



Leia Mais: Folha

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