Luiz Armando Bagolin
[RESUMO] Andy Warhol, sustenta o autor, aceitou a nova condição da arte de seu tempo, atravessada pelo poder do dinheiro e pela vulgaridade da fama, como performance efêmera, em que a exposição da vida do artista passou a contar mais que suas obras. O Museu de Arte Brasileira da Faap (Fundação Armando Alvares Penteado), em São Paulo, inaugura em 1º de maio a maior exposição dedicada a Warhol já realizada fora dos EUA.
Em um domingo, 10 de janeiro de 1982, Andy Warhol (1928-1987) registrava em seu diário os seguintes comentários:
“Nenhum telefonema. Isso é o que acontece quando a gente foi a grande estrela da noite anterior, ninguém liga na manhã seguinte. […] Liguei para Jon e ninguém atendeu. Jane Holzer ligou e disse que estava em Washington com o sujeito que escreveu ‘Shampoo’ e ‘Chinatown’, Robert Towne. O novo filme dele, ‘Personal Best’, é sobre assumir, sobre atletas sapatões. Eles chegariam a Nova York mais tarde e ela queria ir jantar. E disse: ‘Traga seu gravador, porque ele é fascinante, muito fascinante’.”
“Às 10h20 fui para o Elaine’s (táxi $4) e Elaine está gorda de novo! Muito gorda. Depois de tudo o que passou para emagrecer. Jane já estava lá com Robert Towne e tinham conseguido uma mesa ótima. Durante as primeiras três horas detestei aquele cara. Na verdade, talvez ainda deteste, não tenho certeza. É tipo aquelas pessoas da Califórnia. Dizendo todas aquelas palavras que eu odeio, tipo ‘asshole’ e ‘bimbo’. ‘Bimbo’ me faz subir pelas paredes. […] A mulher dele, Julie, estava lá, abandonou a carreira artística para se dedicar aos negócios imobiliários. É bonita, mas está chegando naquele estágio de ser trocada por outra. Quase virando a esquina.”
“Robert Towne falou muito sobre Warren e disse que há pouco encontrou Jack em Aspen. Ah, e no início ele citou minha frase — ‘No futuro todo o mundo terá 15 minutos de fama’ —, só que disse ‘dez minutos’, e aí foi engraçado porque Mark Rydell, o diretor, veio quinze minutos depois e citou a mesma frase e disse ’15 minutos’. […] Então perguntei se ele queria comprar a frase para usar num título e ele disse (riso), ‘Não, eu gosto mais de títulos com uma palavra só’. Aí eu disse que venderia para ele o título ‘THE’, que uma vez Tennessee Williams me vendeu. Ele riu.”
Há muitos outros episódios como esse que mal disfarçariam no leitor atual um tipo de riso mascado, algo que é um pouco engraçado —talvez pela sinceridade, por ir direto ao ponto, por expressar uma opinião sem muitas voltas—, embora soe estranho tal comportamento a uma geração que, quase 40 anos depois da morte do artista, se acostumaria ao politicamente correto, a não expressar publicamente (nem intimamente) nenhuma forma de preconceito.
Warhol provavelmente teria achado tudo isso que está na ordem do dia —a onda “woke”, o identitarismo, a horda de influencers digitais, reality shows etc.— muito chato e enfadonho, mais até do que as pessoas tediosas, falseadas de vida, mas cheias de glamour, dinheiro e fama de sua própria época. Ou, por isso mesmo, talvez achasse normal a chatice que tomou conta de nossa época, entendendo-a perfeitamente como efeito daquilo que sua geração plantou.
Ele dizia que a pop art (termo inventado pelo crítico inglês Lawrence Alloway em 1956) era simplesmente “uma maneira de gostar das coisas”, aliando à definição vazia uma atitude blasé que o caracterizou ao longo de toda sua trajetória artística. A sua frase sobre os 15 minutos de fama de qualquer indivíduo comum no futuro expunha com fina ironia como ele via ser fácil alcançar momentaneamente notoriedade em um mundo onde tudo é apropriável, vendável, onde as pessoas se tornaram mercadorias, se oferecendo como produtos dotados de algum interesse material —ou, como dizemos hoje, monetizável.
O crítico norte-americano Robert Hughes tentou, em um artigo publicado na New York Review of Books em fevereiro daquele ano, 1982, demolir Warhol justamente pela superfluidade excessiva de sua fama em relação ao que ele entregava como obra artística. Segundo Hughes:
“Para a maioria das pessoas que já ouviram falar dele, Warhol é um nome herdado de uma cultura de museu distante, colado a um rosto memorável: um ex-professor de latim com uma peruca de fibra pálida, o sujeito que pinta latas de sopa e conhece todas as estrelas de cinema. Para um público menor, mas internacional, ele é o último dos retratistas sociais verdadeiramente bem-sucedidos, subindo de rosto em rosto em um delírio silencioso de esnobismo, um homem tão interessado nas elites que criou sua própria revista de sociedade.”
“Mas Warhol nunca foi um artista popular no sentido em que Andrew Wyeth é ou Sir Edwin Landseer foi. Esse tipo de popularidade implica ser visto como uma pessoa normal (e, portanto, exemplar) da qual emergem coisas extraordinárias.”
Para Hughes, Warhol, além de não ser um tipo de artista realmente popular, fabricou para si a imagem de um falso iconoclasta, interessado no senso comum e na opinião pública, tal como um repórter —para servir, na verdade, meramente de amálgama entre arte e negócios. Prova disso foi seu relacionamento benevolente com o governo Reagan, a inaugurar um tipo de arte: “A era da estética do lado da oferta”.
Para o crítico, “nenhum público de massa jamais se sentiu à vontade com a obra de Warhol. Certamente, as pessoas sentem que deve haver algo de vazio em um homem que não expressa inclinações fortes, que reage a tudo com o mesmo ‘ah, poxa, ótimo'”.
Hughes não viu, ou preferiu não ver, que Warhol aceitou essa condição da arte como instrumento de autoengano —como performance efêmera na qual a exposição da vida do próprio artista contava mais do que aquilo que ele produzia, pois tinha agora um novo modo de valoração, dependente das demandas de uma sociedade orientada ao consumo e de suas panfletagens enxameadas pelos meios de comunicação de massa.
A arte contemporânea dependia então de uma agenda que ditava os novos modelos de comportamento diante da escalada do liberalismo econômico, do feminismo, da fetichização da vulgaridade, do nacionalismo protecionista e do avanço incontornável daquilo que Max Horkheimer e Theodor Adorno batizaram de indústria cultural: a cultura do lazer como estratégia para a acumulação capitalista. O tipo de artista enclausurado em seu ateliê, compondo uma obra que exprimiria sua potência subjetiva (Pollock, por exemplo), não fazia mais sentido algum.
O que desagradava principalmente a Hughes era que, em Warhol, não havia mais a perspectiva de desenvolvimento de uma arte que dialogava ou contestava as premissas do romantismo, do naturalismo, do abstracionismo pós-cubista ou do expressionismo abstrato. A arte de Warhol não expressaria nada além da vacuidade do próprio sistema que preenche as coisas apenas para dotá-las de uma mercê: da sutileza simbólica do poder do dinheiro.
Nascido em 1928 em Pittsburgh como Andrew Warhola Jr., Warhol era filho de Andrej e Julia Warhola, imigrantes rutenos, um grupo que se estabeleceu na área da atual Eslováquia. A família viveu em um bairro pobre de imigrantes do Leste Europeu durante a Grande Depressão. Na época, Pittsburgh era uma cidade industrial do aço, onde seu pai trabalhou em uma mina de carvão.
Aos oito anos, após sofrer escarlatina, Warhol desenvolveu coreia de Sydenham, um distúrbio neurológico que afeta a coordenação motora e que condicionaria muito sua vida, deixando-o com aparência pálida e cabelos muito ralos. Ele parece nunca ter superado as mudanças em sua aparência física, considerada estranha aos olhos dos outros, o que o tornou alvo de bullying na escola.
Em 1949, aos 21 anos, Warhol se mudou para Nova York com US$ 200 no bolso. Seu primeiro emprego foi na revista Glamour. Tornou-se ilustrador comercial de sucesso na cidade, principalmente devido à sua técnica da linha borrada, que dava um efeito de impressão às suas ilustrações.
Daí ao ingresso no mundo das artes foi um pulo. Warhol se tornou um dos principais expoentes da pop art norte-americana ao lado de Roy Lichtenstein, James Rosenquist, Claes Oldenburg, Robert Indiana e outros. Em comum entre eles, havia a apropriação da frivolidade e do distanciamento emocional encontrado em histórias em quadrinhos, veículos de propaganda e anúncios publicitários. Ou se apropriavam deles simplesmente porque os achavam bonitos —e não viam sentido algum em separar tal universo do artístico.
Em suma, apenas o que os diferenciava era a clientela: uma com baixo poder aquisitivo e pouca cultura; outra, com muito poder aquisitivo e pouca cultura.
Warhol também identificava os meios de comunicação em massa como instrumentos de manipulação, não apenas de informação, e comparava-os ao Big Brother, de George Orwell. Em entrevista de 1971, ao comentar a tendência da mídia de programar a resposta emocional do público (como após o assassinato de JFK), declarou: “Todo o mundo se parece e age do mesmo jeito e cada vez mais é assim…”.
De certo modo, ao erigir retratos em série de pessoas famosas como Marilyn Monroe, Liz Taylor, Elvis Presley e Ronald Reagan ao lado de imagens de latas de sopa Campbell, caixas de sabão em pó Brillo, revólveres e acidentes de carro, Warhol desnaturalizava-os como ícones da cultura popular ou da política, esvaziando-os de seu status social a fim de conferir-lhes um novo, dado pelo poder da arte.
O retrato de Marilyn, por exemplo, feito logo após a morte da atriz (“Shot Sage Blue Marilyn”, 1964), foi negociado na Christie’s em 2022 por US$ 195 milhões (R$ 1,1 bilhão), o maior preço pago por uma obra de arte do século 20 até hoje.
Warhol apropriou-se do conteúdo do comércio —bens e celebridades— mas, ao mesmo tempo, desmontou as formas institucionais de circulação desses produtos, conferindo-lhes um efeito “ex nihilo”, como encontrado nos ícones bizantinos que admirava com sua mãe na igreja ortodoxa que frequentavam em sua juventude. Tal como nesses ícones, a frontalidade da figura e o uso de cores sólidas e vivas servem para lembrar que o que se apresenta ali é apenas a imagem de sua ausência.
Um pouco por isso, talvez, o artista cultuou a si mesmo como um receptáculo esvaziado, sujeito a ser ocupado ocasionalmente, de acordo com as circunstâncias da vida e do meio que o circundava. Warhol não via nenhuma importância nisso, como demonstram as anotações em seu diário, publicado dois anos após sua morte.
Ele sempre deu pistas, contudo, de que o que pensava era algo tão comum e desinteressante quanto uma lata de sopa —aliás, como é todo indivíduo humano visto à distância, ausente de relações. Mas, por detrás do alter ego aparentemente frio e impassível, havia uma pessoa frágil e muito influenciável, que acreditava na eternidade da arte e em seu poder de ultrapassar as vicissitudes do tempo no qual foi criada, assim como das idiossincrasias de seu criador.
Em entrevista a Gretchen Berg em 1966, Warhol disse: “Se quiser saber tudo sobre Andy Warhol, olhe para a superfície… e lá estou eu. Não há nada por trás”.