Como Allan dos Santos virou pivô de briga entre Mo…

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Bruno Caniato

Em 2014, Allan Lopes dos Santos era um blogueiro conservador, politicamente irrelevante, dedicado a difundir teorias da conspiração em obscuros nichos de extrema direita na internet. Ex-seminarista católico e discípulo do guru de direita Olavo de Carvalho, fundou o portal Terça Livre, que rapidamente ganhou tração no meio antipetista na onda dos protestos contra Dilma Rousseff. Apoiador de Jair Bolsonaro em 2018, ampliou exponencialmente o seu número de seguidores e tornou-se um dos porta-vozes da onda conservadora. Passou a usar suas redes para difundir mentiras e ataques às instituições, a membros do Judiciário e à democracia, o que fez o ministro Alexandre de Moraes in­cluí-lo nos inquéritos das fake news e dos atos antidemocráticos. Nos Estados Unidos desde 2020, com uma ordem de prisão nas costas, Allan segue provocando encrencas em série.

Além da ordem de prisão, Moraes pediu aos Estados Unidos a extradição e inclusão de Allan na lista vermelha da Interpol, a que reúne os principais caçados pela polícia no mundo. A Justiça americana negou a extradição, e a Interpol rejeitou o pedido (veja o quadro). Nesse meio-tempo, o ministro suspendeu a atuação do blogueiro na internet, mas foi desafiado inúmeras vezes com a criação de outros perfis em plataformas como Facebook, Instagram, X e até OnlyFans (site de conteúdo adulto), que iam sendo sistematicamente derrubadas a mando do STF.

Na última semana, no entanto, a saga ganhou um desdobramento sem precedentes. Com a ordem de bloquear os canais de Santos, além de suspender os lucros gerados por eles, o Rumble, plataforma de vídeo concorrente do YouTube e popular entre a direita, e a Trump Media Group, que tem parceria com a rede, levaram Moraes à Justiça dos Estados Unidos sob a alegação de censura. Como não cumpriu a decisão no Brasil, a plataforma está suspensa por aqui desde o dia 21. Na ação nos Estados Unidos, o Rumble pediu uma liminar, que já foi negada pela Justiça da Flórida, exigindo que as ordens de Moraes sejam consideradas inválidas. O processo corre em um tribunal federal na Flórida, onde vive Allan, e acusa Moraes de abusar da autoridade para violar a liberdade de expressão, preceito fundamental da Constituição americana, garantido pela Primeira Emenda.

DE OLHO – Moraes: caçada a criminoso digital motivou ação contra ele na Flórida (Bruno Peres/Agência Brasil)
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O CEO do Rumble, o canadense Chris Pavlovski, tem desafiado publicamente o ministro, como ao receber decisão para indicar um representante no Brasil. “Recebemos outra ordem ilegal e secreta da noite passada”, escreveu no X, marcando o perfil de Moraes. “Você não tem autoridade sobre o Rumble aqui nos Estados Unidos, a menos que passe pelo governo americano. Vejo você no tribunal”, completou. Especialistas enxergam por trás desse tipo de ataque uma postura cínica da empresa. “O que o Rumble busca, no fundo, é garantir seu direito de ignorar as decisões de Moraes sem prejuízo às operações no Brasil”, avalia Salem Nasser, professor de direito internacional na Fundação Getulio Vargas (FGV).

Nos círculos bolsonaristas, o imbróglio envolvendo Moraes e liberdade de expressão nos Estados Unidos é munição perfeita para disparar contra decisões do STF. Deturpado por segmentos da direita brasileira, o direito à livre manifestação de opiniões é o principal mantra entoado por políticos e influenciadores investigados por disseminar fake news e ódio nas redes — não por acaso, muitos deles são ligados ao bolsonarismo e, capitaneando ataques às urnas eletrônicas, aos ministros do Supremo e às instituições democráticas, são hoje alvos da Justiça por envolvimento em plano de golpe de Estado. A denúncia contra Moraes, respaldada por uma empresa ligada a Trump, cai como uma luva para a narrativa bolsonarista de perseguição judicial. “É uma relação benéfica para ambos: Allan dos Santos serve à direita como um personagem perseguido pelo STF e, em troca, lucra com a monetização massiva de seus vídeos atacando autoridades”, diz David Nemer, professor de estudos da mídia na Universidade da Virgínia, nos EUA. Quem vem colocando mais fogo na história é Elon Musk, dono do X, protagonista de notórios embates com Moraes na Justiça brasileira e atual membro do governo Trump. Ele passou a usar suas redes sociais para alardear uma derrocada do magistrado.

NO ATAQUE - Chris Pavlovski: CEO do Rumble desafia Moraes via redes sociais
NO ATAQUE - Chris Pavlovski: CEO do Rumble desafia Moraes via redes sociais (Zach D Roberts/AFP)
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Ao se tornar alvo de um processo na Justiça americana, Alexandre de Moraes enfrenta, sem dúvida, uma situação desconfortável. Sem foro privilegiado nos Estados Unidos, ele deve ser julgado como cidadão comum, como seria se um juiz da Suprema Corte americana fosse denunciado no Brasil. Na visão de analistas, os precedentes legais do país — onde a liberdade de expressão, prevista na Primeira Emenda da Constituição, é considerada um preceito quase sagrado — desenham um cenário complexo para a defesa do magistrado. A atual conjuntura política americana, em que as plataformas digitais se aproximam cada vez mais da Casa Branca, e a participação da empresa de Trump na acusação colocam ainda mais fogo no caso. Por outro lado, dificilmente uma sentença por lá teria grandes consequências legais por aqui, já que a decisão teria de ser aceita pelo próprio STF. “Na pior das hipóteses, uma condenação de Moraes poderia gerar sanções como multas, indenizações e cassação de visto. Mas isso teria pouco efeito prático no Brasil”, explica Maristela Basso, professora de direito internacional na USP.

A situação escalou na quarta-feira 26, quando um órgão do governo Trump, o Escritório de Assuntos do Hemisfério Ocidental, publicou uma mensagem fazendo referência ao caso. “Bloquear o acesso à informação e impor multas a empresas sediadas nos EUA por se recusarem a censurar indivíduos que lá vivem é incompatível com valores democráticos, incluindo a liberdade de expressão”, escreveu. A resposta veio em nota oficial do Itamaraty: “O governo brasileiro rejeita, com firmeza, qualquer tentativa de politizar decisões judiciais”. Responsável pela defesa de autoridades nacionais dentro e fora do país, a Advocacia-Geral da União (AGU) vai representar Moraes nos Estados Unidos.

EM CASA - Donos de big techs na posse de Trump: afinidades
EM CASA - Donos de big techs na posse de Trump: afinidades (Julia Demaree Nikhinson/AP Photo/Bloomberg/Getty Images)
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Pivô da disputa judicial nos Estados Unidos, Allan dos Santos mantém no Rumble um endereço com atualizações diárias sobre a “perseguição” jurídica com outros 31 200 inscritos, oferecendo assinaturas pagas por “apenas” 100 dólares (mais de 500 reais) por ano. Além das redes sociais, é o fundador da Academia Conservadora, plataforma de streaming de “cursos” de história, filosofia e biologia — o acesso vitalício a todo o material pode ser adquirido por um pagamento único de 250 dólares. Em razão do prolífico conteúdo, quase integralmente composto de falsidades científicas e doutrinação ideológica de extrema direita, Allan dos Santos responde ao STF por “organização criminosa voltada à prática de crimes de ameaça, incitação à prática de crimes, calúnia, difamação, injúria e outros”, “desestabilização do estado democrático de direito” e “lavagem de dinheiro decorrente de atividade criminosa”.

ECO - Ato contra o STF: caso ajuda o discurso bolsonarista
ECO - Ato contra o STF: caso ajuda o discurso bolsonarista (Maira Erlich/Bloomberg/Getty Images)

Tendo como estopim as manifestações de um blogueiro cujas publicações não merecem relevância para além da área criminal, o caso acabou ganhando destaque maior por envolver importantes questões da atualidade, tais como: jurisdição internacional, liberdade de expressão e as responsabilidades das plataformas de internet. Na quinta-feira 27, Moraes, dentro de seu estilo de não recuar diante de ameaças, mandou um claro recado sobre tentativas de interferência na soberania nacional: “Deixamos de ser colônia em 7 de setembro de 1822”, afirmou, durante sessão do STF. É preciso mesmo, de uma vez por todas, diferenciar uma terra sem lei do direito à liberdade de expressão — que se faça justiça a isso no Brasil e nos Estados Unidos.

Publicado em VEJA de 28 de fevereiro de 2025, edição nº 2933



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