Sérgio Dávila
Poucas horas antes de morrer, aos 87, na quarta (7), em decorrência da recidiva de um câncer no útero que se manifestou na caixa torácica, Lucy Helena Pane Dávila mostrava o bom humor que marcou sua vida adulta.
“Eu estou, ó, fiu, fiu”, dizia aos três filhos, Luís, Sérgio e Marcos (Peri), e à sobrinha Elisa no quarto do hospital, assobiando e esfregando as palmas das mãos, como sinalizam as pessoas para avisar que estão deixando uma festa antes que ela acabe.
A vida de Lucy não foi uma festa, longe disso. Paulistana, terceira entre quatro irmãs, viu aos nove anos o pai abandonar a casa em que moravam, deixando a mulher e as filhas. Elas só souberam do destino dele quando Lucy já era adulta.
Criada pela mãe, a enfermeira Elisa Pane, com a ajuda de tios maternos e paternos, pulou de casa em casa. Com uma bolsa, formou-se em contabilidade na Escola de Comércio Álvares Penteado. Seu primeiro emprego foi no Corinthians, aos 15, mas trabalharia em várias atividades até o fim, principalmente como vendedora —de joias a carros usados, de roupas a quadros que ela mesmo pintava ou retocava.
Admirada por sua beleza na juventude, gostava de lembrar a Páscoa em que se vestiu de coelhinha no estande da Kopenhagen dentro da loja de departamentos Sears —filas se formavam para a compra de ovos de chocolate.
Foi nessa época que conheceu o futuro marido, Humberto, que se ofereceu para lhe dar aulas de inglês. Casou-se aos 22 e ficaram juntos por 30 anos, até uma separação ruidosa. Depois do afastamento inicial, voltou a ser amiga até o fim daquele que ela dizia ser o grande amor de sua vida.
Ariana teimosa que era, morou sozinha em Interlagos, depois do divórcio, e na Vila Madalena, mesmo após dois assaltos, um violento, e da volta do câncer. Frequentou assiduamente a Congregação Cristã do Brasil, ultimamente no Jardim das Bandeiras.
As irmãs foram um capítulo à parte. A mais velha, Carolina, era parceira da igreja e de visitas noturnas a enfermos, e Nica, a alma complementar na elaboração das loucuras. Viveram grudadas até a morte delas, respectivamente em 2013 e 2024. A última perda a abalou muito e coincidiu com a recidiva da doença, que havia sido debelada 18 anos antes.
Também na velhice voltou a se dedicar mais a três paixões: a leitura (devorava vários livros por mês), a música erudita (tocou flauta doce na juventude, principalmente hinos) e a pintura em aquarela. Tinha orgulho do curso que fez com o arquiteto Roberto Rondino, de aprender a desenhar usando o lado esquerdo do cérebro.
Tentou passar essa sensibilidade aos netos, Pedro, Gabriel, Rita, Cecilia e Martim, os verdadeiros amores da velhice. Amiga das noras Marli e Teté e da ex-nora Clarisse, dos sobrinhos e dos amigos dos filhos, estava sempre alegre, falando e cantando. No velório, lembraram a vez em que foi bilheteira da rave organizada pelo caçula na Granja Viana, de onde não saiu até o amanhecer.
Vivia planejando a próxima festa, e eram muitas por ano, por qualquer motivo. A última aconteceu em seu aniversário, em 8 de abril, uma feijoada para a qual convidou 50 parentes e amigos.
Todos cantaram com ela sua música preferida, “Pessoas São como Estrelas”, que Peri fez em sua homenagem e gravou no projeto Canções Velhas Para Embrulhar Peixes, ao lado do poeta arrudA, transformada depois em clipe por Luís, filho que cuidou intensivamente dela nos últimos anos.
A música será tocada em cerimônia não religiosa e informal de sétimo dia que os filhos farão nesta quarta (14), às 12h, na praça Horácio Sabino, em Pinheiros. Diz a letra: “Pessoas são como estrelas/algumas já não existem/mas continuamos a vê-las”.



