Laryssa Borges
Jair Bolsonaro nunca escondeu de ninguém sua certeza de que forças ocultas conspiravam contra ele. Por medo de sabotagem, evitava viagens em jatos particulares. Protegido por um batalhão de seguranças, não abria mão de dormir com uma pistola embaixo do travesseiro. Para afastar risco de envenenamento, pedia a alguém para experimentar a comida antes de ser servida. De todos os fantasmas que habitavam a mente do ex-presidente, no entanto, o pior era o que soprava em seus ouvidos a existência de um complô para apeá-lo do poder. Dele fariam parte ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) e do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), partidos de esquerda e “gente do sistema”. A trama imaginária envolvia uma maquinação que teria fraudado as urnas eletrônicas em 2018. “Era para eu ter vencido no primeiro turno”, costumava repetir Bolsonaro, ao tentar explicar o flagrante paradoxo. Para a Procuradoria-Geral da República, esse comportamento paranoico era apenas um ardil para dissimular o início do planejamento de um cerco à democracia — obsessão que, se comprovada, agora pode render até quarenta anos de prisão ao ex-presidente.
Na terça-feira 18, o procurador-geral, Paulo Gonet, acusou formalmente Bolsonaro, quatro ex-ministros de seu governo, quatro auxiliares diretos e mais 25 pessoas, entre militares e civis, de atuarem juntos naquela que pode ter sido a mais bisonha tentativa de golpe de Estado da história. O libelo apresenta Bolsonaro como o líder de uma organização que agiu para tumultuar as eleições de 2022, impedir a posse do presidente eleito, impor medidas de exceção, prender autoridades e até eliminar fisicamente adversários. Num documento de 272 páginas, Gonet alinhavou um manancial de informações, mensagens, minutas, planilhas, manuscritos, anotações e um sem-número de evidências que foram colhidas pela Polícia Federal durante um ano e meio de investigação sobre a ação de um grupo que conspirou contra as instituições e por pouco, muito pouco, não levou o país a mergulhar num abismo institucional.

O procurador afirma que Bolsonaro é idealizador, organizador e beneficiário da trama golpista, ao lado do general Walter Braga Netto, ex-candidato a vice-presidente. Gonet concluiu que a dupla atuou em sintonia no cometimento dos delitos de crimes como golpe de Estado, abolição violenta do Estado democrático, dano qualificado e deterioração de patrimônio tombado. Bolsonaro e Braga Netto não só tinham ciência como teriam participado e autorizado as ações praticadas pelos seus subordinados. O general, por exemplo, era responsável por cooptar para a trama os comandantes do Exército, da Marinha e da Aeronáutica.

As primeiras sementes golpistas, segundo o procurador, foram lançadas logo depois da posse de Bolsonaro, em 2019, quando ele insistia em desacreditar a Justiça Eleitoral. As ações concretas começaram em 2021, com a escalada de ataques às instituições, ao STF e à credibilidade das urnas eletrônicas. Na época, Lula havia acabado de recobrar os direitos políticos e já se apresentava como candidato ao Planalto. Na medida em que as eleições se aproximavam, o grupo acelerava certos movimentos. O então ministro da Defesa, general Paulo Sérgio Nogueira, e o diretor-geral da Abin, Alexandre Ramagem, por exemplo, produziram estudos para contestar a confiabilidade das urnas eletrônicas. O ministro da Justiça, Anderson Torres, e o chefe do Gabinete de Segurança Institucional, general Augusto Heleno, entre outras coisas, elaboraram hipóteses jurídicas que permitiam questionar o resultado da eleição.

Os dias que se seguiram à derrota foram intensos e permeados de discussões sobre medidas que impediriam a posse de Lula. Na peça de acusação, Gonet cita como evidência da ativa participação de Bolsonaro na trama golpista um áudio enviado a Mauro Cid, ex-ajudante de ordens de Bolsonaro, em que o general Mario Fernandes, que trabalhava no Palácio do Planalto, relata uma conversa na qual o ex-presidente teria afirmado que o grupo golpista tinha autorização para agir até 31 de dezembro. Segundo o procurador, o militar se referia ao plano que previa o assassinato de Lula, do vice-presidente, Geraldo Alckmin, e do ministro Alexandre de Moraes. “O áudio não deixa dúvidas de que a ação violenta era conhecida e autorizada por Jair Messias Bolsonaro”, escreveu Gonet. Acusação tão grave quanto essa deveria ter vindo acompanhada de maiores elementos na denúncia, o que não ocorreu.
Peça fundamental na investigação sobre o plano golpista, o tenente-coronel Mauro Cid era guardião de muitos segredos. Preso em maio de 2023, ele quebrou uma regra de ouro no meio militar ao decidir contar o que sabia. As informações que o delator repassou aos investigadores e os documentos oficiais que foram apreendidos podem definir o futuro do ex-presidente e de muitos de seus colegas de farda. Na quarta-feira 19, o ministro Alexandre de Moraes, relator do caso, tirou o sigilo da delação. Assim que o teor da acusação foi divulgado, a defesa de Bolsonaro anunciou que pedirá a anulação do acordo de colaboração. O argumento é de que Cid foi pressionado e induzido a mentir, mudando ao longo de mais de dez depoimentos versões sobre episódios importantes. Advogado de Braga Netto, o criminalista José Luis Oliveira Lima vem lembrando nos últimos dias áudios nos quais Mauro Cid diz a interlocutores que suas declarações na PF eram distorcidas para completar lacunas da investigação contra bolsonaristas — esses áudios foram revelados em uma reportagem de capa de VEJA no ano passado. A despeito da tentativa dos defensores de explorarem essa e outras supostas fragilidades da investigação e da denúncia, o conjunto de evidências contra o ex-presidente forma um cerco jurídico difícil de ser rompido. A batalha, porém, não será travada apenas no tribunal.

Horas antes da apresentação da denúncia, Bolsonaro esteve no Congresso para um almoço com senadores aliados. No encontro, pediu que os parlamentares priorizem a aprovação do projeto que anistia os condenados pelos ataques de 8 de janeiro de 2023 e defendeu que sejam feitas mudanças na Lei da Ficha Limpa, que, segundo ele, funcionaria como um instrumento para tirar políticos de direita da disputa eleitoral. Em tese, essas duas iniciativas legislativas, se aprovadas, podem reabilitar o capitão, devolvendo-lhe o direito de concorrer em 2026. “Olha para a minha cara. O que tu acha? Eu não tenho nenhuma preocupação com as acusações. Zero”, disse. No dia seguinte à visita aos senadores, ele bateu à porta de deputados aliados. Depois, os parlamentares organizaram um ato em que reclamaram de perseguição política e reforçaram os apelos pró-anistia. “O tempo todo isso de vamos prender Bolsonaro. Eu c… para prisão”, reafirmou.

Cada vez mais, as forças da direita devem se dividir entre a defesa do capitão e a busca por uma nova liderança capaz de disputar as eleições presidenciais de 2026. O nome favorito é o do governador paulista, Tarcísio de Freitas, que tem dito nos bastidores que só aceitaria a missão com o apoio de Bolsonaro — o ex-presidente, por sua vez, segue dizendo que vai registrar a candidatura em 2026, independente de qualquer coisa. Na pior das hipóteses, tentaria ficar em campanha mesmo na prisão, repetindo o que Lula fez em 2018. Nos meios políticos, há quase um consenso sobre dois fatos: que nenhum candidato de oposição pode prescindir do apoio do ex-presidente e que a insistência de Bolsonaro em concorrer a qualquer custo representa hoje um tremendo problema.

O impacto da denúncia da PGR e do iminente julgamento no STF ainda é uma incógnita para a imagem de Bolsonaro. As ruas devem representar o primeiro teste. Antes da denúncia, já estava programada para 16 de março uma manifestação organizada pelo ex-presidente e seus aliados para atacar o governo Lula e pressionar pelo perdão aos vândalos do 8 de Janeiro. O capitão espera que Copacabana, no Rio de Janeiro, esteja lotada e sirva como uma demonstração de força. Aliados do ex-presidente espalham que uma eventual prisão dele ensejará uma reação ainda maior da claque bolsonarista, a ponto de descambar para algum tipo de convulsão social. A esperança de uma mobilização popular contundente ganhou tração com a divulgação de duas pesquisas de intenção de voto. O Datafolha registrou o maior tombo na aprovação do atual presidente, que passou de 35% para 24%, o pior índice de todos os seus mandatos. Já um levantamento feito pelo Paraná Pesquisas apontou que, se a disputa fosse hoje, Bolsonaro seria o único candidato a superar o petista logo no primeiro turno — e, na segunda rodada, venceria, por 45% a 40%.

Esses dados só terão serventia se o capitão se livrar da inelegibilidade e da acusação de liderar a tentativa de golpe de Estado. Ele corre contra o tempo e quer pressa do Congresso. Na visita ao Senado, chegou a declarar que tem votos suficientes para aprovar a anistia. Sua demonstração de otimismo, no entanto, foi logo confrontada por uma declaração do presidente do Congresso, Davi Alcolumbre, dizendo que o tema não está na pauta. Ou seja: se depender do senador, a anistia não avançará. A declaração foi dada no mesmo dia em que o plenário da Casa aprovou um projeto, com aval do governo Lula, que autoriza o pagamento de emendas parlamentares de orçamentos anteriores, uma verba que pode chegar a 5 bilhões de reais. Sem apoio político, a denúncia apresentada pela PGR deixa Bolsonaro mais distante das urnas — e mais perto da cadeia.

Nesta fase, não é necessário que o procurador apresente provas cabais de cada suspeita — indícios são suficientes — e nos próximos quinze dias a defesa de cada um dos denunciados poderá contraditar as acusações no STF. Também devem começar as pressões das bancas para que o caso seja julgado no plenário do STF, com a participação dos onze ministros. Pelas regras atuais, o processo será apreciado pela Primeira Turma da Corte, colegiado formado por apenas cinco juízes. Para a defesa, uma decisão do plenário impõe mais legitimidade à sentença, seja ela qual for. Para alguns ministros, a mudança de procedimento fatalmente implicaria a necessidade de mais tempo para a conclusão do processo. O tribunal espera julgar o recebimento da acusação — fase em que os suspeitos se transformam em réus — o mais rápido possível, abrindo uma contagem regressiva para que uma decisão final possa ser conhecida ainda neste ano, antes das eleições presidenciais de 2026. Ao falar sobre o assunto, Luís Roberto Barroso, presidente do STF, afirmou que o caso será analisado com seriedade e imparcialidade, independentemente de pressões políticas. Após ter vindo à luz a contundente denúncia da PGR, é exatamente o que o Brasil inteiro espera: que se faça justiça.
Publicado em VEJA de 21 de fevereiro de 2025, edição nº 2932