Marcos Rey: Centenário de autor passa em branco – 21/02/2025 – Ilustrada

Date:

Compartilhe:

Baixote, rechonchudo, com mãos e pés deformados, o escritor Marcos Rey foi um gigante das letras. Autor de 40 livros —que venderam mais de 5 milhões de exemplares—, centenas de crônicas, programas de rádio e oito novelas de TV, fez roteiros de cinema e de séries infantis como “O Sítio do Picapau Amarelo”.

Rey não caiu no esquecimento graças em parte ao perene sucesso das obras que publicou pela coleção Vaga-Lume, adotadas em escolas do país inteiro —a mais conhecida delas, “O Mistério do Cinco Estrelas”, esgotou 2,5 milhões de cópias em sucessivas edições. Mas o escritor deixou de ser lembrado pela sua produção para adultos.

Uma pena para os leitores que não a conhecem. Há nesse conjunto deliciosos romances como “Ópera de Sabão”, “O Último Mamífero do Martinelli” e “Memórias de um Gigolô”, que virou filme e uma minissérie da Globo, escritos por um autodidata que, apesar de sua cultura, não concluiu o antigo ginasial. Nem todos os títulos, infelizmente, são encontrados com facilidade em livrarias.

O centenário de seu nascimento, nesta segunda-feira (17), passou quase em branco. Um dos poucos a registrar a efeméride, o jornalista e escritor Marcelo Duarte afirmou em redes sociais: “Arrisco dizer que Marcos Rey é o mais injustiçado escritor brasileiro”.

Em 1978, o cronista Carlinhos Oliveira, do extinto Jornal do Brasil, já pensava a mesma coisa. “O escritor que no momento é o mais maltratado e injustiçado, e que eu acho o melhor de todos, chama-se Marcos Rey”, declarou à revista Veja.

O contista João Antônio, consagrado pelo hoje clássico “Malagueta, Perus e Bacanaço”, disse a Rey em uma carta: “Como os seus escritos não são complicados —você não enrola o óbvio—, a chamada crítica literária não os badala. Também, como poderão os doutores em estruturalês entender uma literatura que é feita de gente?”

Rey dedicou-se a transformar em ficção de qualidade o que conheceu de perto, da vida noturna ao drama do desemprego, com histórias ambientadas em São Paulo, onde nasceu, viveu e morreu, em 1999, aos 74 anos.

Em um texto, enumerou parte de suas fontes: “No lugar de frequentar as rodas e panelas, preferi me aproximar da vida, conhecer pugilistas, escritores fracassados, vendedores de maconha, futebolistas, prostitutas, fanáticos religiosos, ex-presidiários, cancerosos […] anões, jóqueis, Miss Suéter e Miss Corinthians, porteiros de boates […] e gente que não faz coisa alguma”.

Era um livro aberto. Contava que no período em que morou no Rio de Janeiro, entre 1945 e 1946, pelo motivo que logo será explicado, redigia cartas encomendadas por prostitutas da Lapa. Elas lhe pagavam e divulgavam seus serviços entre as colegas. “Isso me ajudou a manter-me no Rio e a comprar muitos livros”, recordaria.

Tampouco escondia que, por um tempo, os roteiros de filmes eróticos —foram 32, entre eles “O Inseto do Amor” e “O Supermanso”— garantiram seu sustento. “Fui nada mais nada menos que o rei da pornochanchada“, revelaria com certo orgulho. “Este mesmo senhor, de cabelos brancos, que vos fala.”

Jamais, porém, e nem sequer através de seus personagens, referiu-se à tragédia que o marcaria para sempre. Só os familiares mais próximos, seguidores da religião presbiteriana, e a mulher, Palma Bevilacqua Donato, com quem foi casado por 39 anos, sabiam do que se tratava. Eles guardaram silêncio absoluto, afinal rompido após sua morte.

O segredo mantido por seis décadas é que, aos 14 anos, ele foi diagnosticado com hanseníase. Na época chamada de lepra e ainda sem tratamento, a terrível doença acarretava deformidades e mutilações no paciente.

Com a descoberta das sulfonas e de outros medicamentos, em 1945, ela passou a ser curável e os doentes deixaram de transmiti-la. Mesmo assim, as vítimas eram confinadas à força em asilos-colônia, sobretudo no estado de São Paulo, onde apenas em 1939, ano em que um médico identificou a doença de Marcos, o Departamento de Profilaxia da Lepra (DPL) capturou cerca de 8.000 infectados.

Sim, capturou. O DPL empregava guardas sanitários armados, com poder de polícia, para prender pessoas contaminadas que haviam sido alvo de denúncia e levá-las em suas ambulâncias negras a um dos cinco asilos construídos para o isolamento. Rey foi preso, conseguiu fugir, mas voltaria a ser apanhado. Depois de escapar novamente, exilou-se no Rio, onde o risco de internamento forçado era menor. Fichado com o número 19 532, em 1950, dez anos depois da primeira detenção, ganharia um salvo-conduto para circular livremente, o que lhe permitiu mergulhar na literatura.

Marcos Rey chamava-se Edmundo Donato, foi irmão do também escritor Mário Donato (1915-1992) e acredita-se que adotou o pseudônimo para não ser identificado como hanseniano. Não há nenhuma rua com seu nome, mas ele batiza uma biblioteca municipal no bairro paulistano do Campo Limpo, rara homenagem da cidade ao seu centenário escritor.



Leia Mais: Folha

spot_img

Related articles

Site seguro, sem anúncios.  contato@acmanchete.com

×