Naief Haddad
Alguns anos atrás, o médico e escritor Drauzio Varella foi a uma área de palafitas, na periferia de Belém, para gravar uma reportagem com uma equipe da TV Globo.
Habitações sustentadas por estacas às margens de um rio, palafitas são “lugares horríveis”, diz ele em referência às péssimas condições sanitárias. “O banheiro das casas tem um buraco no assoalho, e tudo cai na beira do rio. Quando as águas sobem, elas lavam a sujeira. Mas até que subam, tudo fica por lá.”
Ao saber que Drauzio preparava uma reportagem para a TV, uma jovem moradora se aproximou: “Vocês só vêm aqui para mostrar as coisas feias que temos”.
O médico de 81 anos jamais se esqueceu do puxão de orelha. “Ela tinha razão. Quando um barco de transporte afunda [na Amazônia], o fato aparece nos jornais. No dia a dia, a gente esquece essa parte do Brasil. Só que essa, na verdade, é a maior parte do país e é justamente a parte que pode tornar o Brasil muito diferente dos outros, no bom sentido”, diz o colunista da Folha.
Em livro recém-lançado, Drauzio não trata da Amazônia de modo geral. Por outro lado, não é um recorte de um microcosmo. O rio Negro, tema de “O Sentido das Águas” (Companhia das Letras), nada tem de diminuto. Desde a nascente na Colômbia até se juntar ao Solimões para formar o Amazonas, logo abaixo de Manaus, são 2.200 km, o que faz do Negro um dos três maiores rios do mundo.
O 19º livro de Drauzio pode ser visto como mais uma tentativa de reduzir a distância que separa os brasileiros de outras regiões do país da amazônia.
“Nós somos muito ignorantes em relação à floresta amazônica. Ficamos com essa ideia de um lugar cheio de árvores e que é preciso preservá-las. Sim, é preciso, mas temos que entender a importância de viabilizar a vida [humana] naquele local. Sem outras oportunidades, as pessoas derrubam as árvores para vender madeira. Se você ou eu estivéssemos naquelas condições, com filhos para alimentar, nós também agiríamos dessa forma”, afirma.
Ao longo do livro, Drauzio se empenha em combater mitos ligados à região, como a ideia de que é um grande vazio populacional. “Veja o rio Negro. Há populações indígenas que vivem em pequenas comunidades espalhadas ao longo do rio, algumas mais no interior [da floresta], outras na beirada, nos igarapés.”
Pensar na amazônia como um “tapete verde” é outro mito contra o qual ele se insurge. “Ao sobrevoar algumas áreas, vemos que, de repente, aquela floresta [mais densa, com árvores altas] desaparece para dar lugar a árvores baixas e arbustos, como se estivéssemos no Planalto Central. Parece que uma tesoura monumental passou por ali e podou a floresta.”
Não foi, entretanto, o objetivo de derrubar ideias prontas –e equivocadas– que impulsionou Drauzio inicialmente a escrever sobre a vida em torno do rio Negro. Como na maior parte dos seus livros anteriores, foi a vontade de contar boas histórias que prevaleceu.
Ele integra uma equipe de pesquisadores bancada pela Unip (Universidade Paulista) que, desde 1992, viaja para a região em um projeto de pesquisas botânicas ligadas à atividade farmacológica. Acredita que tenha ido mais de cem vezes ao rio Negro e seus afluentes. “Houve uma época em que íamos todo mês”, lembra.
Curioso como sempre, começou a colher histórias dos moradores, como a de dona Elisabel, uma parteira de Barcelos (AM), mas pensava que um livro sobre a região seria “uma empreitada muito grande”. O tempo passou e, em 2023, um ano depois do lançamento de “O Exercício da Incerteza”, ressurgiu o desejo de se dedicar a um novo projeto.
A essa altura, ele se deu conta de que tinha reunido boas histórias anotadas ao longo de mais de três décadas. Percebeu, porém, que elas não bastariam. Era preciso também apresentar o rio Negro aos leitores.
“O livro exigiu que eu estudasse muito para entender melhor a região. Nos livros de cadeia [‘Estação Carandiru’, ‘Carcereiros’ e ‘Prisioneiras’], era só contar o dia a dia. Neste não, havia a exigência de um preparo maior”, afirma o autor.
Entre os guias de Drauzio, estava o naturalista britânico Alfred Wallace (1823-1913), que passou quatro anos pesquisando a flora e a fauna do rio Negro em meados do século 19.
Em “O Sentido das Águas”, as descrições são claras e pormenorizadas, levando o leitor para dentro da floresta.
“Nessas matas mais baixas, a luz consegue penetrar com relativa facilidade até as bromélias agarradas nos troncos e as samambaias do solo. O chão fica repleto de uma camada espessa de folhas caídas sobre um emaranhado de raízes, troncos e galhos cobertos de musgos, briófitas, cogumelos e gravetos que estalam sob os pés do caminhante”, escreve.
Drauzio mostra a exuberância da botânica assim como a riqueza de idiomas do Alto Rio Negro, onde os indígenas “são fluentes em pelo menos duas ou três línguas, não sendo raros os que falam quatro, cinco ou mais”. São capítulos que agradariam à moradora das palafitas de Belém do início deste texto.
Por outro lado, expõe as tragédias sociais, como a vista por ele em São Gabriel da Cachoeira (AM), município localizado na fronteira com a Colômbia e a Venezuela. Para receber benefícios, como o Bolsa Família, indígenas de comunidades mais afastadas levam quatro ou cinco dias em pequenos barcos para chegar à cidade.
Como frequentemente há entraves burocráticos para o pagamento, eles precisam ficar alguns dias em São Gabriel e se veem obrigados a gastar para comprar alimentos e combustível para os barcos, entre outros itens.
“O que fazem os comerciantes? Pegam o cartão deles, com a senha, e lançam as despesas com o preço que querem. Aquela gente é ingênua, poucos indígenas conhecem a vida selvagem das cidades. E, assim, criam uma dívida permanente. Não é uma escravidão descarada, como no passado, mas é uma forma de escravidão.”
Como “Arrabalde”, de João Moreira Salles, outro livro sobre a amazônia voltado ao público geral, “O Sentido das Águas” questiona visões preconcebidas a respeito da região e revela o gigantismo das belezas e dos problemas. “Nas florestas do rio Negro, é inevitável o conflito entre o deslumbramento e a inquietude diante de tamanha exuberância e imensa fragilidade”, escreve Drauzio.